O CINEMA DE BUTECO ADVERTE: A review de O Som da Liberdade possui spoilers e deverá ser apreciada com moderação. Leia também a crítica de O Som da Liberdade publicada pela Rebeca Brum.
É MUITO DIFÍCIL CONTER MEU ENTUSIASMO E SATISFAÇÃO POR FINALMENTE ASSISTIR O SOM DA LIBERDADE. Uma das obras mais comentadas do mês de setembro de 2023 no Brasil, o longa chegou conquistando o seu espaço com a venda de ingressos nas salas de cinema do país, ações de divulgação pesadas, e, claro, um elogio de YouTuber elegendo a produção como “melhor filme de 2023”.
Meu entusiasmo e animação não poderiam ser por um motivo diferente: me sentiria desconfortável analisando uma obra apenas pela perspectiva externa, ou seja, tudo aquilo que está fora do que assistimos em cena. Seria muito cômodo simplesmente questionar esse panfleto conservador por ser o depósito de matéria fecal da mente de seus produtores. Mas a verdade é que O Som da Liberdade é ruim, mas é ruim com força. Ele só pode ser “o melhor filme do ano” para quem viu apenas um longa-metragem no ano. E aí, não sei você, mas eu ficaria inseguro de levar essa afirmação à sério…
O Som da Liberdade fala sobre um tema muito sério (e real — pelo menos alguma coisa aqui tinha que ser verdadeira). A trama acompanha o herói da ficção (assediador da vida real) Tim Ballard (Jim Caviezel), um agente que dedica a sua vida para combater a ação de pedófilos. Uma de suas investigações o conecta com uma verdadeira rede de escravidão de crianças.
O tráfico de crianças para serem usadas como escravas sexuais é um problema global. Não existe a menor dúvida que esse problema precisa ser debatido e resolvido. No entanto, é um pouco frustrante que uma obra de ficção se apoie no sensacionalismo e na criação de um herói branco norte-americano como o grande salvador. Assim como Tom Cruise deixou a cientologia o convencer de que ele pode voar, a impressão é que Caviezel parece agir como se estivesse atuando em uma continuação de A Paixão de Cristo.
Logo nos minutos iniciais, os espectadores criam uma terrível impressão da qualidade da obra do cineasta Alejandro Monteverde. Se é consciente ou proposital, nunca vamos entender, mas se for, dá para dizer que é cafona, brega e muito infantil. A caracterização do primeiro criminoso é cartunesca. Com um cabelo hipster e um bigode irônico, o vara seca fã número 1 de Lewis Carroll é exatamente o tipo de pessoa que a gente encontra em qualquer balada atualmente. OK. Entendo que pedófilos podem ser como o tipo de pessoa que encontramos em qualquer balada, mas o ponto é que essa caracterização me pareceu ter muitas mensagens implícitas e fica a reflexão.
Quando Ballard finge ser um pedófilo também e tenta se aproximar do criminoso, nós até ouvimos um diálogo óbvio: “Você acha que eu sou idiota para acreditar que isso não é um truque?”. Pelo menos, o roteiro tentou respeitar um mínimo da nossa inteligência, não é mesmo? Mérito para quem escreveu. Só que todo esse momento fica completamente comprometido quando a câmera dá um close no “estereótipo esquer”-, opa, no criminoso. Sua expressão com um sorriso de vilão de araque faz a gente rir. Culpa direta do diretor de fotografia e do próprio diretor, que deve ter crescido assistindo a série do Batman nos anos 1960. Como você cria a ideia de um vilão sério se o próprio filme faz questão de desmoralizá-lo?
Outro problema GRAVE de O Som da Liberdade diz respeito à sua montagem, que parece um pouco preguiçosa ou amadora ou inexistente. Existe uma sensação de que as cenas são como uma máquina de costura defeituosa conectando uma nas outras de qualquer jeito, sem qualquer cuidado. Qualquer semelhança com novelas da Record não devem ser tomadas como mera coincidência.
Para quem, ao contrário do nerd, viu mais de um filme em 2023, ou na vida (vamos excluir filmes de bonequinhos com a cueca em cima da calça, ok?), deve lembrar do trabalho do compositor Ludwig Göransson em Oppenheimer. Ou de Hans Zimmer em filmes anteriores do cineasta Christopher Nolan. Uma característica de ambos compositores é criar temas grandiosos e onipresentes. A gente pensa no filme e já escuta a música, sabe? O Som da Liberdade TENTA fazer isso e fracassa miseravelmente. Os temas são feios e pomposos. Tentam ser a voz divina, mas eu duvido que os anjos tentariam nos convencer a furar os tímpanos só para nunca mais precisar escutar essas músicas de novo.
Eu vou te poupar de ver reclamações sobre as frases de efeito, seguidas da trilha sonora demonical e do close no rosto do protagonista.
Ainda que seja um tema delicado, existiu uma ausência de direção bizarra na atuação das crianças. Como vítimas dos mais abomináveis crimes, me parece pouco provável que elas conseguissem sorrir, cantar e dançar como fazem em todas as cenas que aparecem. O Som da Liberdade se auto sabota quando ignora o seu próprio ambiente ou deixa de lado as noções básicas da linguagem cinematográfica, como por exemplo o último plano do filme. Quem achou uma boa ideia permitir que a criança que mais sofreu no roteiro fosse enquadrada dentro dos quadrados da janela, como se estivesse vivendo em uma prisão — mesmo após voltar para casa. Qual é a mensagem aqui?
O Som da Liberdade é uma tentativa de fazer cinema e encontrou seu espaço no Brasil com o apoio dos seus semelhantes. Nada funciona, nada é bem feito, nada força a nossa reflexão e o tema fica ali, tratado de qualquer forma, como uma muleta para mais um herói branco do cinema norte-americano. Caso seja do seu interesse assistir a um filme BOM sobre abuso infantil, procure por Cafarnaum, de 2019; ou Confiar, de 2010. Até o polêmico (e medíocre) Megan is Missing, de 2011.
Veja a crítica em vídeo de O Som da Liberdade: