O Cinema de Buteco adverte: o texto a seguir possui spoilers e deverá ser apreciado com moderação.
Cães de Guerra: aqueles que ganham dinheiro com a guerra sem nunca colocar a cara no campo de batalha.
É nesse contexto que adentramos no último filme de Todd Philips (Se beber não case e Um parto de viagem), uma comédia com momentos dramáticos baseada em uma história real.
O longa traz o excelente Miles Teller, que atuou no último Quarteto fantástico (sem comentários), Finalmente 18 (uma ótima versão juvenil de Se beber não case) e a obra prima Whiplash (pela qual merecia até uma indicação que nunca veio). Contracenando com ele, o pitoresco Jonah Hill, estrela de Superbad (um clássico!), Moneyball (precisa ser visto!) e Lobo de Wall Street (também precisa ser visto!).
A dupla tem uma dinâmica muito boa, com uma “química” que convence e uma atuação que eleva os dois de alguma forma. Para Miles, foi uma das primeiras chances de brilhar em uma trama violenta (e falo em sentido de guerra, armas e minas terrestres, pois podemos ver muita violência em Whiplash), enquanto para Jonah foi a oportunidade de mostrar (como ele havia iniciado em Moneyball) que ele é mais do que o gordinho do besteirol, trazendo um personagem novo que, ainda que engraçado e inconsequente, conseguia se diferenciar daquilo que ele já mostrou nas telas.
A interação dos dois começa quando David (Miles) e Efraim (Jonah) se encontram em um funeral, e decidem sair para lembrar dos velhos tempos, quando eram melhores amigos de escola. Em meio às lembranças e às drogas, percebe-se que eles vivem em realidades muito diferentes. David mora em Miami em um pequeno apartamento com a namorada e ganha a vida fazendo o que Efraim chama de “mastubar homens por dinheiro” (na verdade ele era massagista). Suas finanças são apertadas, porém ele parece ser feliz. Sua última tentativa de fazer sucesso na vida fora tentar vender lençóis de alto padrão para asilos, porém ele perceber que houve algo de errado em seu posicionamento de mercado – e de público. Efraim, por outro lado, já tem uma vida bem mais tranquila, tinha ganhado certa grana trabalhando com o tio e agora começava seu próprio negócio com uma boa ideia e uma visão das entrelinhas.
O jeito tímido e humilde de David contrapõe-se ao estilo arrogante e exibicionista de Efraim e, apesar de terem se distanciado milhas após a escola (física e psicologicamente), a amizade dos dois continua bem evidente ali. Esse abismo de personalidades acaba trazendo uma dinâmica interessante para a atuação dos dois, permitindo que ambos apareçam de sua maneira e protagonizem o filme juntos, ao invés de um ser o coadjuvante do outro.
A trama se desenrola quando David, já apertado nas contas, descobre que a namorada está grávida e começa a surtar só de pensar em como irá sustentar mais uma boca em casa. Sem alternativas, aceita a proposta de trabalho de Efraim, que trabalha no mercado bélico abastecendo a guerra no Iraque. A situação é delicada, já que David e a namorada são contra a guerra e, para trabalhar nessa área, David teria de ir contra seus princípios pacíficos e ainda mentir para a queridinha.
Pois bem, apesar do começo condenável, aos poucos as coisas começam a ir bem. David sempre demonstrou um jeito para negociação e era bem mais amigável que Efraim, portanto não só descobria furos interessantes nos contratos que encontrava no site do governo, quanto também levava bem os negócios em geral. Efraim dizia que eles “sobreviviam das migalhas”, pegando pedidos pequenos e ganhando no volume. Esse é o melhor momento de interação das atuações de Jonah e Miles, que são extremamente convincentes mesmo em diálogos rasos e momentos de descontração. A primeira desavença do “casal” acontece quando David, atendendo a um pedido do exército americano, manda um pedido de Berettas da Itália para o Iraque, desconhecendo uma lei que proibia esse tráfego pelo país da bota. Tentando encontrar uma maneira de fazer o pedido sob as ameaças do general americano (um dos personagens mais clichês do filme, com visual veterano da 2ª guerra, palavreado malcriado e estopim zero), os dois decidem que a única maneira de garantir que tudo dará certo na entrega será ir pessoalmente até a Jordânia (para onde desviaram o pedido).
O que se segue acaba gerando o melhor arco da obra, a começar pela chegada no aeroporto da cidade de Amã, na Jordânia, que traz uma das melhores citações de Efraim no filme. Ao furar a fila, ele se vira para os cidadãos ali parados e diz “Desculpe. Não esquentem, eu tenho que ir primeiro, sou americano”. A frase consegue não só definir muito do caráter de Efraim – sempre se achando melhor que os outros, mais privilegiado e mais importante – mas do caráter de uma persona estadunidense que já conhecíamos, capaz de passar por cima das regras e da ética aproveitando de uma posição política e econômica de destaque (inclusive, a jogada de cenas que percebemos – que nos joga de Miami Beach até a Jordânia e o Iraque em situação de guerra – é um belo wake up call para o abismo social e o fato de que a guerra é do mais rico). Em seguida, após uma conversa com um intérprete de 7 anos (de idade, não de experiência), concluem que terão que ir de caminhão até o Iraque levando todas as Berettas, com um contrabandista/motorista chamado Marlboro que parece bastante sem noção. O que rola não vou contar, pois é realmente a sequência de ação mais empolgante de todas, mas acreditem quando digo que vocês não devem estar segurando xixi nesse momento.
Após o episódio do Iraque, não só a dupla deixa de ser um par de cães de guerra (por terem ido ao campo de batalha), como também aparecem no mapa. Nesse contexto, recebem um pedido de mais de 300 milhões de Obamas, e, após conhecerem um dos maiores nomes no tráfico de armas – Henry Girard, interpretado por Bradley Cooper (aparentemente o diretor é fã do cara, não?) – decidem enviar uma proposta ao governo americano. O drama real oficial começa ali, e o filme ganha densidade e prende ainda mais o espectador.
Algumas coisas bem interessantes sobre Cães de Guerra: o longa é dividido em capítulos, tornando-se mais literário e teatral. O recurso, utilizado por diretores como Lars Von Trier e Baz Luhrman é uma ferramenta interessante de separação de temas e organização da trama, e consegue manter a curiosidade aguçada sem perder fluidez. Nesse caso, os nomes dos capítulos eram sempre citações de algum dos personagens (“estamos fudidos”, “isso não são as migalhas, é a torta inteira” ou “tenho certeza absoluta que isso ilegal”), o que gerava uma interessante ansiedade para ver em que contexto aquela frase se encaixaria.
Outro item que me saltou aos olhos foi o tom do filme. Ao ver o trailer e o histórico do diretor, você espera uma comédia – daquelas boas quando você não quer pensar em nada. Porém, o tema, a trama e a situação real pela qual David e Efraim passam trazem um toque de tensão e de drama que deixam o filme bem mais completo.
Não se engane, ainda assim o filme consegue ser bem divertido, com cenas de ação muito bem feitas, ótimas atuações, um bom roteiro com ótimos diálogos e pegadas bem cômicas, uma excelente trilha sonora e fotografia interessantíssima.
Por fim, um bom filme para observar outro lado da guerra (assim como vimos outro lado do baseball em Moneyball, também com o gorduchinho Jonah Hill), o lado do dinheiro, para ver de forma mais humana os erros e desonestidades que são dia a dia dos EUA, do Brasil e do mundo, e para apreciar com leveza uma das histórias mais surpreendentes que a guerra deixou.