HÁ DE SE ENTENDER, a priori, que a Academia de Artes e Ciências Cinematográficas se modulou historicamente como uma instituição de caráter midiático e, portanto, influente sobre determinado – e grande – público. E, enquanto tal, propõe-se fundamentalmente a arquitetar e transmitir narrativas que a representem dentro de um contexto geral.
Na noite de ontem (26 de fevereiro), a cerimônia da 89ª edição do Oscar começou oferecendo o prêmio de melhor ator coadjuvante a Mahershala Ali, por “Moonlight” e, no último instante de sua aparição anual, coroou a mesma produção como o melhor filme dos últimos doze meses. Entre uma ponta e outra, presenciamos “O Apartamento” elegendo-se melhor filme estrangeiro e direcionando uma mensagem crítica às políticas intolerantes de Donald Trump, Viola Davis num intenso discurso ao receber a estatueta pela melhor atuação coadjuvante feminina, Casey Affleck superando polêmicas pessoais para consagrar-se o melhor ator principal, o “filme do Mel Gibson” – “Até o Último Homem” – levando dois prêmios para casa, o contextualmente relevante “O.J.: Made in America” sendo escolhido o melhor documentário, e Damien Chazelle tornando-se o mais jovem vencedor do Oscar de melhor direção. Ao realizarmos uma breve correlação entre estes elementos – e esquecermos da confusão final durante alguns instantes -, assimilamos prontamente algumas das principais bases de sustentação desta narrativa.
O reconhecimento direcionado a “Moonlight”, predominantemente repercutido, concretizou a intenção de utilizar a ocasião para postular a Academia enquanto opositora a todo tipo de preconceito étnico e racial existente dentro das articulações da indústria cinematográfica de Hollywood, e reconhecer esta questão não é diminuir a obra de maneira alguma; o que o projeto de Barry Jenkins significa – ou sua significação – dentro do xadrez contextual não o empalidece de maneira alguma, tal qual não faria com nenhum de seus concorrentes, caso fossem premiados. Se o Oscar considerasse que, neste ano, a questão protagonista era a necessidade da arte em reencontrar suas origens, seguiria o caminho de “La La Land”; caso acreditasse ser necessário frisar a necessidade da compreensão entre seres humanos, provavelmente seguiria o caminho de “Manchester à Beira-mar” ou “A Chegada”; a também atual problemática migratória poderia premiar “A Qualquer Custo” ou mesmo “Lion”; e o debate racial, acerca do segregacionismo que reverbera na sociedade ainda que os tempos avancem, determinaria no reconhecimento de “Estrelas Além do Tempo”, “Um Limite Entre Nós” ou do premiado de fato. Não há espaço para qualquer sugestão de uma conspiração, de que haja uma trama arquitetada e manipulada para a determinação do vencedor; apenas a compreensão desta escolha enquanto reflexo extensor de um contexto e simbólico de um raciocínio conjuntivo.
É natural que a Academia defenda seus valores e pense-os de acordo com os objetivos da instituição; o problema é quando uma linha de pensamento bastante semelhante a esta transborda para a concepção cinematográfica individual de cada cinéfilo – e a premiação deste ano foi um exemplo sintomático da linha crescente deste movimento. O ciberespaço, território predominantemente ocupado pelo exercício de simulacros, é consideravelmente facilitador e receptível a engajamentos e discursos moralizantes – cujo tecido não possui maior profundidade do que as linhas das palavras que ocupam -, e parece, atualmente, uma firme motivação para cada interessado pela sétima arte apropriar-se do material da mesma para defender causas ideológicas; torna-se necessária, assim sendo, a lembrança de que um filme – tal qual toda obra de arte – sempre possui conteúdo sociopolítico e força potencial de transformação, sim, mas que não deve ser instrumentalizado de modo a transformar-se num mero servidor ideológico – isto comprometeria o cinema de maneira irreversível. Aqueles que poderão reduzir ou empalidecer a história de “Moonlight”, destarte, são seus próprios defensores. Um determinado grupo de admiradores que, embora berrem discursos de tolerância e compreensão, fizeram chacota da profunda decepção que certamente acometeu os premiados de “La La Land” ao serem notificados do equívoco e terem suas estatuetas retiradas – são incapazes, afinal, de sensibilizarem com a frustração do outro, uma vez que não torciam por seu sucesso.
Para estes cinéfilos, o cinema deixou de ser o principal objeto de fascínio, tornando-se uma mera ferramenta de reforço ou alcance das causas que os agradavam ou engajavam previamente – um passo largo para inevitavelmente atingir a incapacidade de imersão intensa numa narrativa ficcional. Quando repudiam “Até o Último Homem”, longa-metragem dirigido por Mel Gibson, em decorrência das declarações abomináveis outrora realizadas pelo mesmo, pulverizam um filme em relação às questões externas de uma realidade que, assim sendo, dignificaria “maior preocupação”; ao condenarem automaticamente a premiação de Casey Affleck por sua sensível interpretação em “Manchester à Beira-mar”, prejulgam-no apenas pelo reforço de uma necessidade de engajamento, e descartam um trabalho de atuação – poderosíssimo elemento artístico – pela mesma razão. Acreditando-se em posições superiores, como agentes fundamentais de causas “mais importantes”, concebem o cinema enquanto meramente sujeito às lógicas “da vida real” – e subestimam, assim, a força daquele que é sujeito de si e carrega sua própria essencialidade.
Torçamos para que esta não seja a marca deixada pela premiação de “Moonlight”, uma obra direcionada à tolerância – esta sim, muito além dos discursos forjados daqueles que autoafirmam-se no prazer de brindá-la conforme a própria conveniência.