Tardamos, mas não falhamos. A volta ao mundo do Cinema de Buteco começou láááá em 2014, quando nos embrenhamos pelos filmes do Laos; atravessamos a Ásia até o Oriente Médio para conhecer um país que até então não tinha cinemas; pisamos no Leste Europeu para um panorama dos mais importantes cineastas poloneses; saltamos à África para conferir a conexão entre Brasil e Moçambique; e agora chegamos perto de casa numa viagem pelo cinema de um país fascinante e vizinho nosso: o Suriname. Bem-vindos à quinta edição do Buteco Pelo Mundo!
Para ler ouvindo: Damaru (2001)
SURINAME
Onde fica: América do Sul
População: 558 mil
Capital: Paramaribo
Língua oficial: Holandês
Cerveja típica: Parbo Bier
O Suriname é tipo um primo diferentão entre os sul-americanos.
Enquanto a maior parte do continente fala espanhol ou português, o idioma oficial no Suriname não é sequer uma língua latina, mas o holandês. Dirigem na esquerda, como os ingleses. O cristianismo é forte, mas disputa espaço com o hinduísmo e o islamismo. E embora poucos filmes tenham sido produzidos até hoje no país, eles são um ótimo ponto de partida para conhecer o fascinante caldeirão cultural que é o nosso vizinho de cima.
Situado no norte da América do Sul, entre a Guiana e a Guiana Francesa, o Suriname faz fronteira com um pedação do Pará e um tiquinho do Amapá. Mas geo e demograficamente, o contraste com o Brasil não poderia ser maior. Enquanto somos de longe o maior e mais populoso país do continente, o Suriname é o menor e menos habitado: são apenas meio milhão de pessoas – o equivalente a Londrina ou Juiz de Fora –, sendo que metade mora na capital, Paramaribo.
O território surinamês é 80% floresta e cheio de partes intocadas. Tanto é que vira e mexe rola uma expedição científica que encontra uma porção de novas espécies por lá. Em 2012, por exemplo, cientistas descobriram nada menos do que 60 animais em apenas três semanas, incluindo insetos, peixes e um sapo cor-de-chocolate que poderia ter saído do universo de Harry Potter.
Se na natureza a diversidade do Suriname impressiona, culturalmente ela é ainda mais interessante. O kaseko, gênero musical típico do país, mistura ritmos caribenhos, batidas africanas e jazz. A cozinha surinamesa é uma fusão de diversas culinárias, com ingredientes que incluem mandioca, banana, curry indiano e um molho de amendoim típico do Sudeste Asiático. Os feriados locais incluem celebrações muçulmanas, hindus, cristãs e o ano-novo chinês.
Quando o assunto é o idioma, então, a coisa é ainda mais complexa. O holandês pode ser a língua oficial, aquela do governo e dos negócios – mas ao ligar a TV, você vai topar com mais canais em hindi e mandarim do que qualquer outro idioma. E a maioria dos habitantes, não importa a etnia ou religião, é versada no Sranan Tongo – literalmente, “língua surinamesa”. Originalmente falada pela população negra (creole) do país e hoje amplamente usada por todas as etnias, é uma mistura curiosa de vários idiomas europeus, com forte influência do inglês. Quer um exemplo? “Adoro isso” em Sranan Tongo é “mi lobi dati”, quase “me love that”.
Essa mistura de povos e culturas remonta ao século 19. Quando a escravidão foi abolida no Suriname, em 1863 (sim, nada menos que 25 anos antes da Lei Áurea fazer o mesmo no Brasil), os holandeses trouxeram uma enxurrada de imigrantes para trabalhar nas plantações, vindos de partes distantes do mundo como Índia, China e a ilha de Java, na Indonésia. Junte a essa galera os descendentes de escravos africanos, holandeses e ameríndios locais (os habitantes originais do Suriname), e está explicado porque nosso vizinho do norte é tão plural.
Até hoje, no entanto, é um país dividido. Os vários grupos étnicos tendem a não se misturar; muitos não se bicam – há indianos discriminando negros e vice-versa, por exemplo –, e até os partidos políticos são baseados em etnias.
Se essa complexa diversidade parece um prato cheio para dramas com um pé na realidade, é porque é mesmo: tanto é que o filme mais icônico já produzido no Suriname parte de uma premissa romântica – um surinamês negro se apaixonando por uma surinamesa hindu – para contar uma história que também tem muito de política.
One love, Wan Pipel
Até meados dos anos 70, pouquíssimos filmes haviam sido feitos no Suriname, incluindo um documentário que foi sucesso de crítica (Faja Lobbi, vencedor do Urso de Ouro em Berlim em 1960) e um longa de 1974 chamado Operation Makonaima (nada a ver com o romance de Mário de Andrade), mais tarde repaginado e lançado nos EUA como um “blaxploitation de terror” sob o nome The Obsessed One.
Foi em 1975, enquanto o Suriname passava pelo processo de independência da Holanda, que o diretor Pim de la Parra filmou sua obra mais famosa. Wan Pipel se destaca não só por ser o primeiro longa estrelado por atores surinameses, mas por realmente ter a cara do país.
A história começa na Holanda, quando Roy – um surinamês que estuda em Amsterdã – recebe um telegrama dizendo que sua mãe está nas últimas. Ele voa para Paramaribo a tempo de dar adeus à senhorinha, mas em vez de voltar pra Europa, terminar o doutorado e se casar com a namorada holandesa, se descobre totalmente seduzido pelo seu país natal, do estilo de vida sossegado às apetitosas carambolas do mercado da cidade. Numa festa de música caribenha, Roy fica a fim de uma moça hindu, a enfermeira Rubia, dando início ao triângulo amoroso salpicado com rixas familiares que move a trama.
Wan Pipel explora vários dos temas que fazem do Suriname único: a diversidade cultural, a mistura de idiomas no dia a dia (num mesmo diálogo, passam do holandês pro Sranan Tongo e de volta pro holandês), a relação próxima com o país que o colonizou – um personagem até mesmo abandona a família e se manda para a Holanda, o que de fato rolou em muitos lares surinameses na época –, os conflitos entre hindus e negros e diversos outros aspectos.
O filme era um sonho antigo de Pim de la Parra, que nasceu no Suriname (então chamado de “Guiana Holandesa”) e levou quase 15 anos para tirar o projeto do papel. “Durante os anos 1970, cerca de 300 mil surinameses – quase metade da população do país – migraram para a Holanda pois achavam que lá teriam uma vida melhor. Com Wan Pipel a gente tentou mostrar que eles podiam, e deveriam, ser bem-sucedidos em seu país natal”, disse De la Parra numa entrevista de 2012.
Segundo o próprio diretor, os três protagonistas servem como metáforas: a holandesa Karina como os Países Baixos, o negro Roy e a hindu Rubia como o Suriname. “Embora Roy e Rubia não tenham as mesmas origens étnicas”, aponta ele, “eles compartilham a mesma nacionalidade e, juntos, são responsáveis pelo futuro de seu novo país, independente da Holanda. O final do filme, em que Roy e Rubia dizem adeus a Karina no aeroporto, é um adeus simbólico ao seu ex-colonizador. Ao mesmo tempo, o retorno permanente de Roy fala a todos os surinameses que moravam na Holanda, incitando-os a voltar ao Suriname para construir a nova nação independente.”
No Suriname, Wan Pipel foi um sucesso estrondoso e a première contou até com o presidente do país na época. Os surinameses lotaram os cinemas, indo assistir duas, três, quatro vezes; pela primeira vez, se identificavam de verdade com um longa-metragem.
Mas nem tudo foram flores. Para a atriz Diana Gangaram Panday, que interpretou a hindu Rubia, a popularidade do filme foi praticamente uma maldição. Por conta do relacionamento com um negro, sua personagem era vista quase como uma prostituta pelos mais conservadores da comunidade hindu no Suriname, e a atriz foi tão xingada e hostilizada nas ruas que decidiu deixar o seu país natal. Panday morreu em 2016, sem nunca mais ter atuado em outro filme.
Tempos difíceis
Wan Pipel traz um final cheio de otimismo e esperança quanto ao futuro da recém-fundada República do Suriname. A realidade, entretanto, foi mais dura. O país teve um período conturbado após a independência, com uma sucessão de golpes militares e escândalos políticos. Hoje em dia as coisas estão mais estáveis, mas isso é o melhor que dá pra dizer. Vejam o caso de Dési Bouterse, por exemplo: é um cara que já liderou golpe militar, foi condenado por tráfico de drogas e responsável por um infame massacre de oponentes políticos em 1982 (que, aliás, é o pano de fundo para um telefilme de 2002, Paramaribo Papers). E, já faz quase 10 anos, é o presidente do Suriname.
A popularidade de Wan Pipel no Suriname tampouco se traduziu numa era de ouro para o cinema surinamês. Longe disso: foram literalmente décadas até que novos filmes começassem a ser produzidos por lá. Nem salas de cinema o país tinha mais: com o advento do VHS e uma recessão econômica nos anos 1990, a maioria virou shopping ou cassino.
Foi só em 2010 que um multiplex foi inaugurado em Paramaribo, exibindo principalmente grandes produções internacionais – tanto de Hollywood quanto de Bollywood. A concorrência maior, aliás, não é nem com a Netflix ou os torrents da vida, mas com a TV aberta. Isso porque o Suriname é um dos poucos países do mundo onde os canais de televisão transmitem, na maior cara de pau, todos os filmes do momento, incluindo os que ainda estão passando no cinema – sem pagar um tostão em direitos de distribuição. Uma “TV Pirata”, literalmente.
Ao contrário de muitos de seus vizinhos caribenhos, o Suriname não é lá uma locação muito comum para filmes estrangeiros e não figura em nenhuma produção de renome internacional – nem mesmo o viajado James Bond deu as caras por lá ainda. Mas de tempos em tempos, o país atrai a atenção de algum cineasta independente que se propõe a usar a rica cultura do país como matéria-prima para suas obras.
Um bom exemplo é o americano Ben Russell, que dirigiu Let Each One Go Where He May (2009). O longa retrata a viagem de dois irmãos de Paramaribo ao interior do Suriname, como que refazendo a jornada percorrida por seus antepassados, ex-escravos que fugiram das mãos dos holandeses três séculos antes. Chamando a atenção por seus planos longuíssimos – em mais de duas horas de projeção, são apenas 13 planos-sequência quase sem diálogo –, o filme de Russell percorreu festivais pelo mundo afora e está disponível de graça no Vimeo.
Por outro lado, outras produções (principalmente holandesas) usam o Suriname de forma bem mais duvidosa. Em 2017, por exemplo, foi lançado Tuintje in Mijn Hart – “Jardim no Meu Coração” é a singela tradução do título –, que tem aquele clima de comédia romântica em lugar exótico, com confusões no meio da floresta e até um bicho-preguiça como “parte do elenco”. O filme foi gravado em mais de 30 locações por todo o Suriname, empregou 700 figurantes locais e custou milhões de euros. Se para os padrões da Holanda já é uma superprodução, imagine quando comparado ao orçamento médio de um filme surinamês.
Loucos o bastante
Depois de se mudar para a Holanda e ver seus longas seguintes fracassando nas bilheterias europeias, Pim de la Parra, o diretor de Wan Pipel, se especializou em fazer o que chamava de minimal movies – filmes de baixíssimo orçamento, sem roteiro, rodados em poucos dias. Um bom exemplo é In the Meantime (2006) – produzido com os alunos da Academia de Cinema do Suriname que ele fundou em 2005 –, que foi gravado em apenas uma semana e custou 15 mil dólares. Isso para um longa com 2 horas e meia e duração!
Mesmo assim, quando perguntado se esse método ultraeconômico poderia levar a uma indústria de cinema no Suriname, o diretor foi categórico. “Acho que é simplesmente impossível”, disse, citando a pobreza e a baixa população do país como obstáculos incontornáveis. “Você precisaria, então, de alguém que viesse de uma família rica, ou recebesse subsídios, ou simplesmente fosse louco o bastante para produzir um filme. Acho que pertenço essencialmente a essa última categoria, o sonhador que fica tentando, tentando e tentando, porque quer aquilo de verdade.”
Após dirigir o thriller psicológico O Segredo do Rio Saramacca (2007), também no Suriname, De la Parra anunciou sua intenção de filmar um último longa no país. Krin Skin seria um remake do clássico italiano A Aventura, de Michelangelo Antonioni, mas com um protagonista negro. Anos depois, sem conseguir levantar o orçamento necessário, o diretor jogou a toalha. “Fazer filmes é uma profissão para os jovens”, disse ele em 2017, “por isso eu pude tomar a fria decisão de abandonar esse sonho de tanto tempo antes de completar 78 anos. Falei pra mim mesmo: ‘chega’.”
Felizmente, os jovens cineastas surinameses não têm medo desse desafio – e se mostram um tanto mais otimistas.
Pegue por exemplo o diretor Ivan Tai-Apin, que declarou numa entrevista recente que “o Suriname pode se tornar a nova Hollywood”. Seu filme de estreia, Wiren (2018), sobre um deficiente auditivo que enfrenta o governo e o sistema para conquistar direitos básicos, tem por trás um claro objetivo social – a integração e aceitação dos surdos no Suriname. A divulgação da obra foi bem marketing de guerrilha, incluindo um flash mob nas ruas de Paramaribo. E uma curiosidade: Borger Breeveld, o protagonista de Wan Pipel, interpreta um médico no filme.
Outro filme de 2018 foi o primeiro longa de terror produzido no Suriname. All Alone poderia muito bem figurar na categoria minimal movie, pois foi feito com o orçamento de meros 6 mil dólares – um décimo do que A Bruxa de Blair, pra ficar num caso famoso de filme de terror barataço, custou.
O Suriname provavelmente nunca virará uma nova Hollywood. Mas quem sabe a tenacidade da nova geração de cineastas, loucos o bastante para perseverar e fazer cinema mesmo onde as coisas não conspiram a favor, não faça com que, mais cedo ou mais tarde, um novo Wan Pipel ganhe o mundo e leve a riqueza cultural do nosso vizinho para as telas de todo o planeta?
Bibliografia/leitura adicional:
A Paradox in Caribbean Cinema? An Interview with Minimal Movie Filmmaker Pim de la Parra, Pragmatic Dreamer from Suriname (Emiel Martens/Imagination)
Thirteen Long Shots in Suriname (Ed M. Koziarski/Chicago Reader)
7 Question Interview with Ben Russell, Artist & Filmmaker (Andrew Rosinski/DINCA)
Suriname profile – Timeline (BBC)
Cocoa frog and lilliputian beetle among 60 new species found in Suriname (Adam Vaughan/The Guardian)