BEM-VINDOS À TERCEIRA EDIÇÃO do Buteco Pelo Mundo! Nosso rolé cinematográfico por esse mundão começou no Sudeste Asiático, onde conhecemos thrillers e comédias românticas produzidos no Laos. Depois partimos para a Arábia Saudita e descobrimos um país onde ir ao cinema é um passatempo que simplesmente não existe. Agora chegou a vez de darmos um pulo no Leste Europeu e visitarmos a terra de Andrzej Wajda, Krzysztof Kieślowski e Roman Polanski. Polônia, aí vamos nós!
Para ler ouvindo: Polska Rootz
POLÔNIA
Onde fica: Leste Europeu
População: 38 milhões
Capital: Varsóvia
Língua oficial: polonês
Cerveja típica: Żywiec, Tyskie, Okocim e muitas outras
Ao contrário do Laos e da Arábia Saudita, cujas cinematografias ainda estão na primeira infância, a Polônia tem uma relação intensa com o cinema desde os primórdios da sétima arte, lá pelo final do século 19. O inventor Kazimierz Prószyński patenteou sua primeira câmera cinematográfica em 1894, antes mesmo dos irmãos Lumière. O Pleograf – vamos aportuguesar o polonês e chamá-lo de Pleógrafo – podia filmar e também projetar, assim como o cinematógrafo dos Lumière. Então por que os irmãos franceses são conhecidos até hoje como os pais do cinema enquanto o nome de Prószyński ficou praticamente esquecido?
Bom, parece que o Pleógrafo era trambolhoso demais para ser amplamente adotado, mas o principal motivo deve mesmo ser que os Lumière não apenas criaram um novo aparelho, mas tiveram uma outra ideia genial e ainda mais lucrativa: ao exibirem suas filmagens em público e cobrarem por isso, foram também os inventores da sessão (e do ingresso) de cinema.
Prószyński também devia ter patenteado o bigode
Em busca de mais informações sobre o inventor, acabei topando com o trailer de uma cinebiografia, mistura de documentário com cenas dramatizadas, chamada Kazimierz Prószyński – Gênio Número 129957. Mas embora o trailer tenha sido lançado em 2008, não há sinais da existência do filme completo nem sequer na página do diretor, um certo Bartosz Paduch, no IMDb. Uma pena, porque parece bem legal:
A Polônia vivia um momento especialmente conturbado nas décadas que se seguiram ao surgimento do cinema. Depois de mais de um século passando de mão em mão e tendo suas fronteiras redesenhadas com frequência (dá pra sentir o drama nesta animação de 1 minuto: tem momentos em que o país literalmente some do mapa!), a Polônia conquistou a independência após a Primeira Guerra e tinha muita coisa pra colocar em ordem em casa. Vários talentos cinematográficos acabaram preferindo fazer carreira no exterior – a atriz Pola Negri, por exemplo, estrelou muitos filmes de Ernst Lubitsch na Alemanha e nos EUA.
Pola Negri e um de seus namorados famosos, um certo Charles Chaplin
Das produções locais, as que ficaram mais famosas foram filmes como o musical Yiddle With His Fiddle (Yidl mitn Fidl, 1936), de Joseph Green, sobre uma menina pobre que se disfarça como homem para ganhar uns trocados nas ruas tocando rabeca, e O Dybbuk (Der Dibuk, 1937), de Michał Waszyński, um drama sobrenatural sobre uma jovem possuída por um espírito maligno (o tal “dybukk” do título) na véspera de seu casamento. São filmes feitos na língua iídiche por cineastas de origem judaica, e representam um valioso retrato da vida dos judeus na Europa durante os anos 1930. Porque pouco tempo depois, em 1939, a Polônia foi invadida pelos alemães e a gente sabe bem o que aconteceu.
A noiva possuída de O Dybbuk (1937)
Seis milhões de poloneses morreram durante a Segunda Guerra Mundial, sendo que três milhões eram judeus, incluindo nomes importantes do cinema polonês como o diretor e roteirista Henryk Szaro, morto a tiros no Gueto de Varsóvia durante a ocupação alemã, e Kazimierz Prószyński – ele mesmo, o inventor do Pleógrafo –, que foi preso pela Gestapo durante a guerra e morreu no campo de concentração alemão de Mauthausen. Sabe o “129957” no título do filme sobre Prószyński que ainda não saiu? Pois é: era justamente seu número como prisioneiro em Mauthausen.
O genocídio não foi apenas literal, mas também cultural. Joseph Goebbels, chefe da propaganda nazista e braço-direito de Hitler, declarou que a Polônia não merecia “ser chamada de uma nação cultural” e fez de tudo para suprimir a cultura do país invadido: universidades, bibliotecas, museus, teatros e cinemas foram todos fechados ou tiveram a entrada permitida apenas aos germânicos. Os cinemas exibiam praticamente só filmes, notícias e materiais de propaganda nazistas, e todos os lucros das bilheterias iam direto para a produção bélica alemã. No meio underground polonês, um slogan ficou famoso na época: “Tylko świnie siedzą w kinie” – “Só os porcos vão ao cinema”. Os horrores que o país viveu durante a guerra acabaram se tornando um tema bastante recorrente na filmografia polonesa, frequente até hoje, setenta anos depois.
Com a derrota de Hitler em 1945, a Polônia se livrou dos nazistas, mas passou as décadas seguintes sob forte influência da outra potência que disputava o país, a União Soviética. E o cinema polonês, que tinha literalmente virado pó (vide a destruição de estúdios, negativos e cópias de filmes, sem falar na morte de cineastas), precisou se reerguer do zero numa Polônia comunista. Claro que grande parte das obras produzidas – principalmente nos primeiros anos de comunismo no país – tinha uma pauta claramente ditada pela nova ideologia do pedaço; mas logo começaram a surgir cineastas mais ousados e controversos, que inseriam críticas ao sistema vigente em suas obras e conseguiam escapar da fórmula socialista. Foi quase dez anos após o fim da guerra e um ano depois da morte de Stálin que surgiu aquele que talvez seja o mais importante cineasta polonês. Com vocês, o senhor Andrzej Wajda.
Wajda fez sua estreia com Geração (Pokolenie, 1955), um drama sobre jovens que se juntam à resistência contra a Alemanha durante a ocupação da Polônia. Seu longa seguinte, Kanal (1957), tem como cenário o sistema de esgoto de Varsóvia, mostrando um grupo se lascando à medida que ficava óbvio que o Levante de Varsóvia – uma malfadada revolta polonesa contra os nazistas em 1944 – estava com os minutos contados. Cinzas e Diamantes (Popiól i Diament, 1958) completou essa chamada “Trilogia da Guerra” com uma trama que se passa em 8 de maio de 1945, o último dia da guerra na Europa, e um protagonista com jeitão de James Dean (Zbigniew Cybulski, que ficou famoso justamente como “o James Dean polonês”) tentando assassinar um figurão comunista – e isso num filme feito em plena Polônia comunista!
Zbigniew Cybulski, o “James Dean polonês”
Wajda tem uma extensa filmografia com mais de quarenta longas, muitos deles tratando da Segunda Guerra e suas consequências, da vida sob o comunismo e de outros temas políticos e históricos. Ele ganhou um Oscar honorário em 2000 e tem hoje 88 anos, mas sua carreira continua firme e forte, e seu filme mais recente é de 2013: Walesa, conclusão de uma trilogia sobre o movimento social “Solidariedade” iniciada com O Homem de Mármore, de 1977, e O Homem de Ferro, de 1981 (calma, marvetes, não tem nada a ver com o Tony Stark), conta a história de Lech Walesa, o político polonês que levou o Nobel da Paz nos anos 1980 e foi presidente da Polônia na década seguinte. Se encontrar os filmes de Wajda em home video no Brasil pode não ser exatamente uma tarefa simples, o cinéfilo mais antenado vai acabar encontrando muita coisa em festivais de cinema por aí. Walesa, inclusive, passou no Festival do Rio ano passado.
Andrzej Wajda ganhou o Oscar e um beijinho da Jane Fonda.
A galerinha muito pirada de Geração (1955).
Agora observe bem essa foto de Geração, filme de estreia de Wajda (feito há quase 60 anos !). Reconheceu o moleque aí do meio? Na época com 22 anos e fazendo uns bicos como ator, ele logo começaria a dirigir seus primeiros curtas e se tornaria provavelmente o mais conhecido cineasta polonês em todo o mundo: Roman Polanski.
Polanski, na verdade, nasceu em Paris, mas sua família era polonesa e ele se mudou ainda pequeno para o país de seus pais. Falar que o timing não foi dos melhores é eufemismo: a época coincidiu justamente com o início da Segunda Guerra e por pouco o pequeno Roman não sobreviveu ao Holocausto. Seus pais sofreram em campos de concentração e sua mãe acabaria morrendo em Auschwitz, enquanto ele conseguiu fugir mudando de nome e fingindo ser de família católica.
Faca na Água, longa de estreia de Polanski.
Depois de estudar na tradicional Escola de Cinema de Łódź (onde Andrzej Wajda também foi aluno) e e assinar um punhado de curtas-metragens promissores (e alguns bem malucões), Polanski dirigiu em 1962 seu primeiro longa, Faca na Água (Nóz w Wodzie). É uma obra claustrofóbica, tensa e bem interessante que se passa quase que inteiramente dentro de um pequeno barco, com apenas três personagens: um homem, sua esposa e um sujeito misterioso a quem eles dão carona.
Mas este acabaria sendo o único filme polonês (e na língua polonesa) feito por Polanski em muito tempo. Depois disso ele filmaria Repulsa ao Sexo e A Dança dos Vampiros na Inglaterra, faria clássicos como O Bebê de Rosemary e Chinatown nos Estados Unidos, passaria por novos eventos traumáticos (o assassinato de sua esposa Sharon Tate pela gangue de Charles Manson, a acusação de estupro que o levou a fugir dos EUA) e continuaria sua carreira novamente na Europa até ganhar seu Oscar de Melhor Diretor em 2002 justamente por uma co-produção polonesa: o filmaço O Pianista, em que Polanski enfrenta os fantasmas de seu próprio passado ao narrar a história de um judeu polonês levado para um campo de concentração.
Polanski hoje, octogenário e ainda bastante produtivo.
Roman Polanski é um dos diretores favoritos do Cinema de Buteco e já recebeu bastante atenção aqui no site, como dá pra perceber pela quantidade de links para críticas no parágrafo anterior (e pela justa homenagem que lhe fizemos quando ele completou 80 anos).
Outro cineasta polonês indispensável é o diretor da famosa Trilogia das Cores, Krzysztof Kieślowski. Kieślowski tem uma filmografia extensa, grande parte feita em sua Polônia natal, incluindo muitos curtas e documentários. Em sua obra de ficção, um dos filmes que acho mais interessantes é Sorte Cega (Przypadek), que parte de um mesmo incidente banal – um cara correndo pra pegar um trem – e cria, a partir de ínfimas variações na primeira cena, três versões bem diferentes do que acontece depois. Se o conceito parece muito semelhante ao alemão Corra, Lola Corra, que tem Franka Potente correndo desembestada por Berlim rumo a três finais totalmente distintos, foi Kieślowski o “homenageado” e não o contrário: Sorte Cega é de 1987, precedendo em mais de uma década o filme alemão, que é de 1999.
Sem falar que os cartazes dos filmes de Kieślowski são sempre bem legais.
Pelo visto Kieślowski curtiu esse lance de variações sobre o mesmo tema, porque em 1989 dirigiu para a TV um projeto quase megalomaníaco chamado O Decálogo – nada menos do que dez filmes de uma hora cada (tá bom, tira o “quase”), inspirados pelos dez mandamentos, com histórias que se passam em um mesmo edifício e com os personagens geralmente aparecendo em mais de um episódio. A ambição de Kieślowski valeu a pena: embora seja tecnicamente uma mini-série televisiva, O Decálogo frequentemente aparece em listas de melhores filmes de todos os tempos.
Kieślowski nos deixou em 1996, com apenas 54 anos, não sem antes dar ao mundo outra de suas obras-primas. A Trilogia das Cores também é um projeto temático, desta vez relacionando os lemas da Revolução Francesa com as cores da bandeira da França. Enquanto o primeiro, A Liberdade É Azul (1993), e o terceiro, A Fraternidade É Vermelha (1994), são dramas falados em francês, A Igualdade É Branca (1994) é uma comédia com um protagonista polonês que é abandonado e humilhado pela esposa, acaba virando mendigo e tenta dar a volta por cima em Varsóvia em busca de vingança contra sua ex-mulher. Geralmente é o filme citado como o “menos ótimo” da trilogia, mas eu o considero um barato.
E ainda tem Julie Delpy como a sacana ex-esposa do protagonista!
Pois nem só de filmes “sérios” vive o cinema polonês: o país também produziu um punhado de comédias com conceitos bem interessantes e que acabaram virando cult. Como Eu Provoquei a Segunda Guerra Mundial (Jak Rozpętałem Drugą Wojnę Swiatową, 1970) conta a história de um azarado soldado polonês que acredita ter desencadeado, com um tiro acidental, o conflito mais sangrento da História. Já Missão Sexual (Seksmisja, 1984) é um sci-fi maluco onde dois cientistas são descongelados após a Terceira Guerra Mundial e descobrem que são os únicos homens em um mundo só de mulheres (com direito a piadas como uma arqueóloga dizendo: “Descobri o elo perdido entre as mulheres e os macacos!”).
Ainda há muito o que falar do cinema polonês, muito cineasta que não citei aqui e muitos títulos que valem a recomendação. A Polônia lança uma média de 50 longas por ano e, embora a grande maioria não chegue ao circuito comercial brasileiro, sempre existe a boa-vontade dos curadores de mostras e festivais, e é só ficar de olho nos cinemas mais alternativos da sua cidade pra ver o que aparece.
Cito dois filmes recentes de que gostei bastante: In Darkness (W Ciemnosci, 2011), da diretora Agnieszka Holland, baseado na história real de um trabalhador polonês que enxergou na “boa ação” de esconder judeus no sistema de esgoto de sua cidade uma ótima oportunidade para ganhar uns trocados, e Aftermath (Poklosie, 2012), de Wladyslaw Pasikowski, que trata de um passado sórdido envolvendo poloneses e terras de judeus mortos na Segunda Guerra e é permeado por aquela atmosfera sinistra de que há algo de podre no ar.
A porrada come solta em Aftermath.
Mas para encerrar esta coluna, vamos voltar mais de um século no tempo e falar de outro pioneiro da sétima arte. Nascido na Rússia mas de origem polonesa, Władysław Starewicz (1882-1965) foi um dos pais do stop-motion, técnica tão antiga e ainda tão amada pelos entusiastas da animação, e produziu dezenas de curtas bem legais usando insetos como protagonistas. Você que já leu esta coluna até aqui, recomendo que separe mais 13 minutos do seu dia para conferir A Vingança do Cameraman, um stop-motion de 1912 (e lá se vão cento e dois anos!) estrelando besouros, gafanhotos e libélulas numa trama sobre… adultério.
Seja retratando tragédias reais, seja usando futuros imaginários e insetos infiéis, a Polônia é parte fundamental da história do cinema. Você já assistiu a alguns dos filmes citados aqui? Quais outros merecem a recomendação? Compartilhe com os leitores da coluna nos comentários, e a gente se vê em um novo continente no próximo Buteco Pelo Mundo!
Série BUTECO PELO MUNDO:
#1- O cinema do LAOS
#2 – ARÁBIA SAUDITA, um país sem cinemas
Bibliografia/leitura adicional:
- In the Polish “Aftermath” (Denise Grollmus/Tablet Magazine)
- Kazimierz Proszynski (Stephen Herbert/Who’s Who of Victorian Cinema)
- A short history of Polish cinema (Andrew Pulver/The Guardian)
- Polish Films and Filmmakers (Local Life)