NOSSA VIAGEM PELO PLANETA COMEÇOU NO SUDESTE ASIÁTICO, quando conhecemos o cinema do Laos na primeira edição da coluna Buteco Pelo Mundo. Agora damos um pulo no Oriente Médio para saber como anda a sétima arte em um país geralmente conhecido por ser tão fechado, conservador, rico em petróleo e mais ainda em controvérsias.
Para ler ouvindo: Saleh Faraj Al-Faraj – Musique de Unayzah
ARÁBIA SAUDITA
Onde fica: Oriente Médio
População: 28 milhões
Capital: Riad
Língua oficial: árabe
Cerveja típica: nenhuma (bebidas alcóolicas são proibidas)
A Arábia Saudita é o berço do islamismo e abriga a cidade mais sagrada da religião, Meca, para onde todos os muçulmanos que tenham condições físicas e financeiras devem fazer uma peregrinação (conhecida como Hajj) pelo menos uma vez na vida. Mas para quem não é muçulmano, o acesso a Meca (assim como a Medina, outra cidade santa para os islâmicos) é estritamente proibido, e a única forma de saber como elas são é através de imagens gravadas por quem esteve lá. Nesse sentido, o documentário Inside Mecca, dirigido em 2003 pela iraquiana-canadense Anisa Mehdi para a National Geographic, é um documento valioso: o filme registra a viagem de três muçulmanos – um jornalista da África do Sul, um empresário da Indonésia e um professor dos EUA – para a peregrinação do Hajj até Meca. Outro filme onde é possível ver a cidade sagrada é Malcolm X, dirigido em 1992 por Spike Lee, que foi o primeiro longa de ficção a receber permissão para filmar em Meca – embora uma equipe de segunda unidade tenha registrado todas as imagens sem a presença do diretor do filme, já que Lee não é muçulmano.
A Grande Mesquita no documentário Inside Mecca
A diretora Anisa Mehdi no meio da galera na cidade santa
Mas enquanto os sauditas têm acesso livre a Meca, muitos outros direitos tidos como óbvios e inalienáveis para grande parte do mundo são negados à população do país. E a proibição a bebidas alcoólicas, caros amigos butequeiros, está longe de ser a pior. Quem mais sofre, sem sombra de dúvida, são as mulheres: elas não podem dirigir, trabalhar em contato com o sexo masculino (a maioria acaba arranjando emprego apenas em escolas e hospitais totalmente femininos), ou mesmo fazer coisas triviais, como abrir uma conta no banco, sem estar acompanhadas de um homem. Além disso, o governo controla a imprensa, a internet e proíbe aglomerações – a exceção são os estádios de futebol, que, naturalmente, só admite torcedores com o cromossomo Y. Pra completar, as salas de cinema foram banidas do país no início dos anos 1980 e não voltaram mais.
Pois é, cinéfilos. O Reino da Arábia Saudita é o único país do mundo sem cinemas. É uma proibição meio inconcebível para a maior parte do planeta, quando até governos linha-dura como o da Coreia do Norte reconhecem o valor da sétima arte, nem que seja como arma de propaganda. Mas na Arábia Saudita, os cinemas – que já tinham uma reputação ruim entre a ala mais conservadora (porque exibiam filmes “que violavam os valores islâmicos” e levavam à temida mistura entre homens e mulheres – e no escuro, ainda por cima!) – sumiram de vez quando justamente essa turminha radical (e não no sentido sessão-tardino da palavra) ascendeu ao poder. Apesar do termo “proibição” ser geralmente associado ao desaparecimento dos cinemas por lá, parece que não existe exatamente uma lei que coloque essa ordem no papel; mas tampouco há muita gente disposta a abrir salas de cinema e levar pedradas, metafóricas ou literais, dos extremistas.
Já que pegar um cineminha com a namorada no fim-de-semana é um passatempo totalmente fora de cogitação, resta aos sauditas a mirrada telinha da TV, por onde podem assistir a dramas e novelas produzidas no país, canais de filmes de outras terras (captados – ilegalmente, claro – por antenas parabólicas) e recorrer ao mercado de home video. Há muitas lojas de vídeo no país com os últimos lançamentos internacionais, mas eles só são vendidos depois que cenas mais polêmicas – como beijos e outras indecências – tenham sido cortadas. Lembra do padre em Cinema Paradiso que ordenava tesouradas nas cenas que ele considerava picantes demais? Exato.
A única opção para os cinéfilos sauditas irem ao cinema envolve disposição e dinheiro no bolso: fazer uma viagem internacional. Parece loucura, mas muita gente faz exatamente isso, viajando aos Emirados Árabes Unidos ou ao Bahrein para conferir os novos lançamentos, sejam eles filmes árabes ou blockbusters ocidentais, e ter a experiência cinematográfica que só uma telona numa sala escura pode proporcionar. Foi justamente esse o tema do documentário Cinema 500 km, um média-metragem dirigido em 2006 pelo saudita Abdullah Al-Eyaf. O filme registra a jornada de um jovem de 21 anos chamado Tareq al-Hussein, que resolve encarar as cinco ou seis horas de estrada necessárias para se chegar a Manama, capital do Bahrein – a 500 quilômetros de sua casa na capital saudita – para ir ao cinema pela primeira vez na vida. Como era de se esperar, o rapaz ficou deslumbrado com a experiência: “As emoções eram mais intensas no cinema do que quando vejo um filme sozinho. Quando eu estava rindo, todo mundo ria junto. Quando eu levava um susto, todo mundo se assustava também”.
Abdullah Al-Eyaf, diretor de Cinema 500 km
Em um país onde filmes não têm sequer lugar para serem exibidos, seria ingenuidade esperar que a produção cinematográfica fosse muito mais que inexistente. E até 2006, de fato, os cineastas sauditas que se aventuravam atrás das câmeras só haviam feito uns poucos curtas e documentários como Cinema 500 km. Mas o mesmo ano marcou o lançamento daquele que foi largamente propagandeado como o primeiro longa-metragem da Arábia Saudita. Keif al-Hal? (“Como Vai?”) é uma comédia dramática sobre uma família saudita dividida entre a modernidade e a tradição; Sahar, a personagem principal, sonha com uma carreira, mas seu irmão fundamentalista quer empurrar-lhe um marido goela abaixo e acha que seu lugar é como dona-de-casa; e nesse meio tempo, ainda rola um clima entre a moça e um primo da família chamado Sultan.
Passinho bizarro no pôster de “Keif al-Hal?”
Mas de saudita mesmo, Keif al-Hal? tem muito pouco. Embora a trama se passe na capital Riad, as filmagens aconteceram inteiramente em Dubai, nos Emirados Árabes. O diretor Izidore Musallam é um palestino que mora no Canadá, o roteirista é egípcio e a atriz principal, Mais Hamdan, é da Jordânia. Saudita da gema tem-se apenas a coadjuvante Hind Mohammed, considerada a primeira atriz de cinema do país (mas que não interpretou um só papel depois desse filme, coitada) e a produção e o investimento da Rotana, a maior empresa de entretenimento do mundo árabe. O acionista majoritário da Rotana é o príncipe saudita Al-Waleed bin Talal, que atualmente ocupa a 26a posição na lista dos homens mais ricos do mundo, donde se deduz que esse suposto primeiro longa talvez tenha sido motivado menos por amor à arte e mais por amor à grana. Não vi o filme para opinar, mas uma nota 3.8 no IMDb é meio embaraçoso.
Keif al-Hal? pode não ter sido nem muito bom nem muito saudita, mas ao menos abriu um precedente para a produção de longas no país. E três anos depois, em 2009, a Rotana não apenas lançou um novo filme, como ainda conseguiu a façanha inédita de exibi-lo no cinema ao público local. Menahi, dirigido por Ayman Makram, é uma comédia sobre um beduíno (um desses árabes nômades que vivem no deserto) que se muda para Dubai e precisa se adaptar à vida na cidade grande. Mais importante do que o filme em si foi mesmo seu lançamento, que marcou a primeira vez em trinta anos que os sauditas puderam ir ao cinema. A sessão especial aconteceu em Riad, e apesar dos pesares – meses penando para obter aprovação das autoridades, pouco tempo para divulgação e até protestos na entrada do teatro, com conservadores zangados tentando atrapalhar a sessão e impedir que os espectadores compactuassem com tamanha imoralidade – foi um sucesso. Mas não pra todo mundo: a maior parte das mulheres teve que ficar de fora, já que apenas meninas de até dez anos (e homens de todas as idades, claro) puderam entrar.
A rapaziada felizona com o ingresso de Menahi
É por essas e outras que O Sonho de Wadjda (Wadjda, no original), lançado em 2012, é provavelmente o filme mais relevante de toda a (ainda breve) história do cinema saudita. Primeiro porque, ao contrário de Keif al-Had? e Menahi, o longa foi 100% filmado no país, e com elenco local. E segundo, porque foi escrito e dirigido por uma mulher.
Haifaa Al Mansour, diretora de O Sonho de Wadjda
Haifaa Al Mansour iniciou sua carreira de cineasta com alguns curtas polêmicos que lidam justamente com o universo feminino. Who?, por exemplo, é sobre um homem que veste uma abaya (aqueles vestidões pretos que só revelam os olhos, semelhantes à burca, e que as mulheres são obrigadas a usar) para stalkear moçoilas e entrar em suas casas. Não surpreende saber que o curta de sete minutos, que não é exatamente um proselitista da tradicional indumentária, só ficou disponível na Arábia Saudita através de DVDs piratas. Al-Mansour também dirigiu o documentário Women Without Shadows, que entra mais fundo na questão da abaya e questiona se é mesmo necessário que as mulheres cubram seus rostos para obedecer aos preceitos islâmicos, abordando temas como o isolamento e a perda de identidade das mulheres no país. Também não é surpresa descobrir que a diretora recebeu mensagens hostis e ameaças de morte por causa do documentário.
Mas Al-Mansour mostrou ter mais colhões do que muito homem em seu país, e se tornar a primeira mulher a realizar um longa de ficção na Arábia Saudita não é qualquer bobagem. Em O Sonho de Wadjda, ela aborda novamente a vontade de se libertar da opressão e da discriminação. A personagem-título é uma garotinha de 10 anos de idade (interpretada pela estreante Waad Mohammed) que sonha em andar de bicicleta e está determinada a lutar por esse direito. Ou você achava que as meninas poderiam pedalar uma bike sem problemas num país que proíbe mulheres adultas de dirigir automóveis? Já dirigir um longa não torna ninguém fora-da-lei, mas tampouco é moleza: muitas vezes a diretora precisava ficar escondida na van da produção e se comunicar com os atores e a equipe através de radinhos, já que não poderia ser vista “se misturando” com rapazes em público nas ruas de Riad.
Só a existência de um filme como O Sonho de Wadjda já é algo significativo para o cinema saudita e as mulheres do país, mas ajuda bastante quando a qualidade da obra acompanha sua importância. Wadjda tem 99% de aprovação no Rotten Tomatoes, ganhou prêmios em Dubai, Veneza, Rotterdam e Vancouver, ficou em 44o lugar numa recente lista dos 100 melhores filmes árabes de todos os tempos e, embora não tenha figurado entre os 5 finalistas, foi o candidato oficial da Arábia Saudita ao Oscar 2014 (a primeira vez que um país submeteu um representante à Academia). O Eduardo Monteiro, integrante do Cinema de Buteco, elogiou o filme em seu blog Cinema Sem Erros, destacando tanto o conteúdo transgressor da história quanto o estilo da cineasta: “O Sonho de Wadjda encanta pela divulgação da força e do empenho das mulheres (sauditas ou não) na busca por seu justo espaço na sociedade – e analisando a dimensão e a velocidade dos progressos, o Converse All Star surrado de Wadjda – símbolo máximo de sua inconformidade – ainda terá uma longa caminhada pela frente.”
Sim, será um caminho longo, lento e complicado, tanto para as mulheres conquistarem uma posição mais justa e digna na sociedade saudita, quanto para o cinema emplacar num país em que é visto com tanta desconfiança. Mas o trabalho de cineastas como Haifaa al-Mansour e Abdullah Al-Eyaf, o apoio de vozes como a do poeta Halima Muzaffar (que defendeu a sétima arte em um grande jornal saudita) e campanhas como a “We Want Cinema” (lançada por jovens cineastas e ativistas do país), quem sabe a Arábia Saudita não obtém progressos substanciais muito antes do que a gente imagina? Uma pesquisa divulgada em 2007 mostrou que 83,7% dos sauditas assistem a filmes e 63,9% apoiam o estabelecimento de salas de cinema. Resta esperar com otimismo que, no dia em que as portas do primeiro cinema saudita se abrirem, ninguém seja barrado na entrada.
Série BUTECO PELO MUNDO:
#1- O cinema do LAOS
#3 – O cinema da POLÔNIA
Bibliografia/leitura adicional:
- Cannes 2012: Saudi Arabia’s First Female Director Brings ‘Wadjda’ to Fest (Scott Roxborough/The Hollywood Reporter)
- ‘Cinema 500 km’ — a Film About Watching a Film (Raid Qusti/Arab News)
- Daring to Use the Silver Screen to Reflect Saudi Society (Hassan M. Fattah/The New York Times)
- ‘First’ Saudi feature film aims high (Vincent Dowd/BBC News)
- “Menahi”: Saudi Movie Screened In Riyadh First Time In 30 Years (Donna Abu-Nasr/Huffington Post)
- No country for movie buffs (K.C.W.F./The Economist)
- Revival of Cinema Sparks Debate in Saudi Arabia (Y. Admon/MEMRI)
- Saudi Arabian film shows theaterless kingdom (Associated Press/TODAY)
- Saudi Cinema (Abdullah Al-Eyaf/BBC)
- Saudi’s first female director seeks to break gender taboos (Reuters/Times Live)
- Saudis in Riyadh enjoy first taste of filmgoing in three decades (Ben Child/The Guardian)
- A view from Saudi Arabia (Michael Jacobson/Paynesville Press)
- Wadjda: Saudi Arabia, Cinema and Women’s Rights (Daniel Lindvall/Film International)