BEM-VINDOS AO BUTECO PELO MUNDO, uma verdadeira volta ao mundo através do cinema. Nesta nova coluna do Cinema de Buteco, vamos colocar o pé na estrada e viajar por todos os continentes desse mundão véio sem porteira, usando a sétima arte como janela para culturas que chegam tão pouco até nós. Nossos destinos passarão longe do óbvio, abordando tanto países que ainda estão engatinhando em termos cinematográficos quanto outros que têm uma produção rica há várias décadas, mas que só chegam ao mainstream de vez em quando e olhe lá.
Reconheço que, em muitos casos, será meio complicado encontrar os filmes mencionados para assistir (embora a curiosidade e a internet sejam ferramentas bem úteis nessa missão). Ainda assim, acho importante saber que eles existem, do que tratam e como se relacionam com a história do país em questão e com sua situação atual. O cinema tem o poder de nos levar a novos mundos, realidades fantásticas e galáxias muito, muito distantes, mas também permite que a gente conheça um pouco mais do nosso próprio planetinha azul. Prepare o passaporte, ponha umas cervejas na mochila e não se esqueça da pipoca.
Para ler ouvindo: Imade Saputra – Laos
LAOS
Onde fica: Sudeste Asiático
População: 6,5 milhões
Capital: Vientiane
Língua oficial: lao
Cerveja típica: Beerlao
Elegi o Laos como a primeira entrada da série Buteco Pelo Mundo não tanto por sua produção cinematográfica em si, mas pela vontade de divulgar um país que tem um povo tão simpático, uma atmosfera tão tranquila e é tão pouco conhecido. O Laos raramente dá as caras nos noticiários e é muitas vezes lembrado pelo recorde nada invejável de “país mais bombardeado de todos os tempos” – o que aconteceu durante a Guerra do Vietnã, quando os norte-vietnamitas (comunistas e inimigos dos EUA) ocuparam parte do país e levaram bomba dos americanos até dizerem chega. Até hoje há muitos lugares por lá que são território arriscado por conta das bombas que ainda não explodiram. Mas uma visita ao Laos é uma experiência fascinante e muito além do passado de conflitos, em que o viajante pode conhecer as inúmeras belezas naturais do país, ter contato com um povo sempre sorridente e descobrir uma cultura rica que inclui o budismo e inúmeras etnias. Quando o assunto é a sétima arte, no entanto, ainda há muito caminho a percorrer.
Tuk-tuk e calmaria nas ruas de Luang Prabang, no centro-norte do Laos
A história do cinema laociano é obscura, pra dizer o mínimo. Antes do Partido Comunista mandar o rei do Laos pras cucuias e tomar o poder em 1975, a produção consistia principalmente em documentários, filmes de guerra e peças de propaganda, tanto a favor do governo monárquico quanto dos então rebeldes comunistas. Da grande maioria desses filmes, só restaram os títulos e olhe lá. Depois disso, então, as coisas minguaram ainda mais: o Partidão virou o único responsável por financiar, produzir e distribuir filmes, mas durante décadas, apenas dois longas-metragens foram feitos no país, e um deles sequer chegou a ver a luz do dia – ou, mais precisamente, o escurinho de uma sala de cinema. The Voice of Guns from the Plain of Jars (Siengpuan Chark Thonghai) é um drama de guerra dirigido em 1983 pelo laociano Somchit Phonsena e o vietnamita Pham Ky Nam. Vai entender: o governo é que financiou tudo, mas o filme não passou pela censura, jamais foi exibido e sabe lá Buda onde é que se consegue uma cópia. É difícil até encontrar informações sobre ele que ultrapassem vinte palavras. Desafio você a tentar.
Cena de Red Lotus. “Say sabaidee to my little friend!”
Destino um pouco melhor teve Red Lotus (Boa Deng, 1987), uma história de amor entre uma garota e um jovem de sua vila que se junta às forças comunistas depois que a casa dele é invadida pelo pai adotivo da moça, um espião do governo real. (A trama se passa numa época pré-comunista, e os vilões, claro, são todos monarquistas.) O cineasta Som Ock Southiphonh, que estudara cinema em Praga enviado pelo governo do Laos, dirigiu Red Lotus com um orçamento mixuruca de cinco mil dólares. A equipe técnica trabalhou de graça e o equipamento precário incluía uma câmera soviética dos tempos da Segunda Guerra que variava a velocidade a seu bel-prazer. Mas desta vez, pelo menos, o filme conseguiu ser exibido, inclusive fora do país, e ganhou até prêmio em um festival no Camboja. E aí você pensa que isso possibilitou a Southiphonh uma carreira razoável como cineasta e pelo menos mais uns longas no currículo, certo? Errado. Ele pulou fora do governo, decidiu juntar dinheiro para produzir seus filmes de forma independente e… abriu uma padaria. Isso já faz mais de vinte anos, e até hoje ele não conseguiu lançar um segundo longa-metragem. Sua maior recompensa por Red Lotus acabaria sendo na vida amorosa: ele se casou com a atriz principal.
A senhora Southiphonh em uma cena do filme
Demorariam longos vinte anos para que o Laos lançasse um novo longa, e agora sem dinheiro estatal. Sabaidee Luang Prabang (2008) faz referência, já no título, à charmosa cidadezinha de Luang Prabang, no centro-norte do país, repleta de templos budistas e casinhas coloridas. E “sabaidee” é uma expressão-curinga no idioma lao que serve para oi, tchau, bom dia, boa noite. No mercado internacional, o filme recebeu o nome de Good Morning, Luang Prabang, que (por acaso ou não) evoca imediatamente a imagem de Robin Williams enchendo os pulmões para gritar no rádio durante o conflito que trouxe ao Laos aquele infame e bombástico recorde. Mas em vez de filme de guerra exalando marxismo, o gênero escolhido foi algo mais palatável ao público moderno e inclusive ao gosto internacional: a comédia romântica.
O casalzinho de Sabaidee Luang Prabang se engraçando na beira do rio
Dirigido pelo tailandês Sakchai Deenan em parceria com o laociano Anousone Sirisackda, Sabaidee Luang Prabang conta a história de um fotógrafo estrangeiro que visita o Laos e se apaixona por uma guia turística local. Segundo Deenan, eles optaram por uma trama mais simples “para que não fosse difícil obter aprovação do governo”. Sim, porque mesmo financiado de maneira totalmente independente, a censura oficial precisa aprovar do mesmo jeito. O resultado é uma historinha de amor previsível e inofensiva, que passeia por várias cidades do país, mostra as belezas naturais, os templos, os tuk-tuks, a comida típica carregada na pimenta, e se esquiva de mostrar o lado ruim, como a pobreza e a falta de liberdade de expressão. É um outro tipo de propaganda, que não tenta disseminar a ideologia do governo mas sim promover o turismo no país. De qualquer forma, o filme é simpático e serve como uma boa introdução para quem nunca ouviu falar nada do Laos.
Sabaidee Luang Prabang foi o filme laociano mais bem-sucedido em muitas décadas (o que não é difícil se considerarmos que, dos outros dois competidores, um sequer foi lançado e o outro levou seu diretor a virar padeiro), chamou atenção internacionalmente e fez, esse sim, a carreira de seu diretor decolar. O problema é que Sakchai Deenan embarcou na onda das comédias românticas e é só olhar as sinopses de seus filmes seguintes pra ver que o cara não quer exatamente inovar. From Pakse With Love, de 2010, trata de um fotógrafo estrangeiro que viaja ao Laos e conhece uma linda garota local. Lao Wedding, de 2011, é sobre um jornalista que visita o Laos e conhece uma bela moça nativa. Não é à toa que os dois são conhecidos como Sabaidee 2 e Sabaidee 3. E você aí reclamando que a série Se Beber, Não Case! se repetia demais.
Mas há esperança para a criatividade e a ousadia no cinema do Laos. Com o advento do digital e a enorme diminuição nos custos que ele proporciona, há uma cena independente em ascensão no país. O Lao New Wave Cinema, por exemplo, é um grupo de jovens cineastas laocianos (cujo nome é uma referência nada sutil à Nouvelle Vague francesa) que fazem cinema de guerrilha, sem muita grana ou equipamentos profissionais, movidos pela paixão pelo cinema e a vontade de mudar a cara da sétima arte no Laos. Eles começaram produzindo alguns curtas bacanas que estão disponíveis online, com legenda em inglês.
A Little Change é sobre uma garota que, após anos morando na capital Vientiane, encontra problemas ao voltar à sua terra natal – e não é apenas o motorista de tuk-tuk que se recusa a continuar dirigindo na estrada esburacada:
Another Love Story, meu favorito dessa leva, é um suspense cuja atmosfera me lembra um pouco Violência Gratuita, de Michael Haneke: um casal está viajando para um resort, o carro apresenta problemas e, quando dois homens param para ajudar, uma situação que parecia normal logo toma novos rumos.
Anysay Keola, responsável pelos dois curtas, dirigiu em 2011 o primeiro longa do Lao New Wave. At the Horizon pode ter um título meio genérico, mas é um thriller de primeira que narra o conflito entre duas pessoas de origens bem diferentes. De um lado, Lud (Khamhou Phanludeth), um homem mudo e humilde, que trabalha consertando motos e usa seu suado dinheirinho para sustentar a esposa e a filha pequena. Do outro, Sin (Khounkham Sidthiyom), filhinho de papai que acha que revólver é brinquedo e que suborno é solução pra tudo. Ao contrário da série Sabaidee, que passeava por terreno seguro para não chocar ninguém ou arranjar problemas com as autoridades, o filme de Keola coloca na roda temas como dinheiro, poder, justiça, vingança e o contraste entre os dois extremos sociais no Laos. At the Horizon pode ter sido feito na raça e com pouquíssimos recursos, mas sua qualidade técnica surpreende, as atuações são muito boas (especialmente Khamhou Phanludeth, que transmite emoções intensas sem dizer uma só linha de diálogo) e Keola exibe um olho muito bom para criar composições interessantes.
O longa está disponível no Vimeo on Demand. Se você for assistir a apenas um filme do Laos, é esse que eu recomendo.
Ainda é cedo, muito cedo, para se falar em uma “Laollywood”, mas as coisas estão melhorando lá na terra do arroz grudento. Em 2012 e 2013 foram feitos mais filmes do que praticamente na história do Laos inteira, entre comédias, romances na linha Sabaidee e até obras que lidam com o sobrenatural. Chanthaly, sobre uma garota que acredita ter visões de sua falecida mãe, recebeu boas críticas de quem viu o filme no Festival de Cinema de Luang Prabang, embora alguns tenham apontado que há mais drama e menos sustos do que se poderia esperar em um filme descrito como sendo “de horror”. Chanthaly também é significativo por ter sido o primeiro filme laociano dirigido por uma mulher, Mattie Do. O site Little Laos on the Prairie fez uma entrevista bacana com Do, em que ela conta como dirigiu um longa sem sequer ter feito um curta antes, e as vantagens e desvantagens de se gravar um filme em sua própria casa, incluindo ter que lavar vasilhas de madrugada após um longo dia de filmagens.
Além da produção local, também dá pra ter contato com o Laos através de filmes estrangeiros filmados por lá. O Foguete (The Rocket), exibido na Mostra de São Paulo em 2013, é o candidato da Austrália ao Oscar 2014, mas é falado no idioma lao com um elenco totalmente laociano, a maioria composta de não-profissionais. O filme conta a história de um garoto que é culpado por só trazer desgraça à família, decide provar que não é tão pé-frio assim e se inscreve em uma competição de foguetes (do tipo pirotécnico, não do espacial). Já o documentário On Safer Ground, que está pra ser lançado, narra a história de um bando de laocianos loucos por futebol que sonhavam em ser o primeiro time a representar seu país em um campeonato na Suécia. O trailer tem quase sete minutos e funciona quase como um minidocumentário, contextualizando o espectador sobre o passado recente do Laos e mostrando um pouco da cultura do país:
Muita gente só toma conhecimento da existência de alguns países “lado B” justamente por causa de campeonatos de futebol. O Laos, infelizmente, nunca participou de uma Copa do Mundo e não vai ser em 2014 que a seleção laociana vai quebrar o jejum – ainda mais ocupando uma desanimadora 167a posição no ranking da Fifa. Ainda bem que temos o cinema para divulgar cantos tão distantes do mundo e que merecem mais reconhecimento e atenção. Coloque o Laos na sua lista de futuras viagens, e enquanto isso, aproveite para descobrir o país através dos filmes. Sabaidee!
A série BUTECO PELO MUNDO continua em:
#2 – ARÁBIA SAUDITA, um país sem cinemas
#3 – POLÔNIA, aí vamos nós!
Bibliografia/leitura adicional:
- Fantastic Fest 2013: Chantaly (Michele Galgana/Diabolique Magazine)
- A Future Laollywood: Q&A with Anysay Keola of Lao New Wave Cinema Productions (Little Laos on the Prairie)
- Good Morning, Luang Prabang and hello to Laos’s film industry (Andrew Buncombe/Independent)
- Good Morning Luang Prabang and Laos’ Budding Film Industry (Anya Kordecki/The Culture Trip)
- Laos Enters The Horror Arena With Mattie Do’s CHANTHALY (Todd Brown/Twitch)
- Laos: The History of Laotian Cinema from 1956 to the Present Day (Movie Movie)
- Sabaidee Luang Prabang Review (Wutthiphan/Nye Noona)
- Starting an Asia Cinema: Laos Past and Present (Som Ock Southiponh/YIDFF)
- A tale of revenge in Laos challenges censors (Georgia Catt/BBC)
- With a little help from Thailand, young Lao film-makers are trying to turn the light back on in their national cinema (Kong Rithdee/Bangkok Post)