Xaveco de Buteco: Conto #9

Modulou a voz, buscando um tom mais firme, enquanto ensaiava diante do espelho.

– Fale um pouco de você, com certeza essa seria uma das primeiras perguntas, pensou.

– Capricorniana, adoro enfrentar desafios. Posso escalar um morro por dia, até dois se precisar.

Ao terminar a frase, recuou, talvez não fosse uma boa ideia iniciar a entrevista falando de signos. Capricorniana, com ascendente em libra, revelaria sua eterna dificuldade em escolher entre duas opções. Azul ou vermelho? Melhor pular para a próxima pergunta.

– Por que devemos te contratar?

– Porque seria um risco positivo para sua empresa, afirmou, soltando os cabelos diante do espelho, balançando suavemente a cabeça enquanto acertava o tom. E prosseguiu: – Pelo que fui informada, esta empresa passou por uma reestruturação, acompanhando a tendência do mercado, mais enxuta e objetiva, correto?

Anotou mentalmente a resposta que formulou, gostou da assertividade, mas precisava checar alguns dados, para não meter os pés pelas mãos.

– Hoje em dia um Google resolve, sorriu animada. E partiu para a próxima questão:

– Quais os seus pontos fortes?

O equilíbrio? A ponderação? A pontualidade? A gentileza no trato com estranhos? A fluência em inglês? Ainda era pouco, precisava de mais pontos fortes. Quais seriam as palavras chaves? Comunicação persuasiva?  Facilidade de construir relacionamentos? Conduta moral ilibada? Ficha limpa? MBA em estatística? Voluntária num abrigo de animais? Explicadora para alunos com dificuldades do pré-vestibular? Apresentadora de karaokê? Sus chef da cantina da escola? Roteirista do prêmio melhores do ano na escola técnica do irmão? Reserva no time de vôlei? O curso de italiano incompleto ajudaria? Ou apontaria uma falha?

As dúvidas começaram a surgir e bateu a insegurança.

– Como você aplicaria seus pontos fortes no ambiente profissional?

– Eu diria que está tudo conectado. Somos o resultado das nossas próprias experiências, e nada acontece por acaso, concorda? Péssima resposta, concluiu, e piorou ao tentar responder a próxima pergunta da lista.

– Quais os seus pontos fracos?

– Não sou boa em falar em público, tenho um certo pavor, mas estou me esforçando, até me ofereci como voluntária para conduzir reuniões e ir me acostumando a falar para um público maior. Tenho problemas com prazos, gostaria que fossem mais flexíveis, mas posso melhorar.

Não devia ter mencionado os prazos, mas precisava ser honesta. A energia e o otimismo que alcançou no início do ensaio se dissipou em segundos. A garganta secou. Chorou lágrimas amargas sentada no bidê. Soluçava baixo, mas foi ouvida.

O colega com quem dividia o quarto e sala apertado bateu na porta do banheiro, onde ela se preparava para a entrevista. Ele havia acabado de se mudar, não tinham a menor intimidade. Ela não queria dividir o apartamento com ninguém, mas não podia falhar novamente com as contas de luz e do condomínio. E seria por pouco tempo.

Wudson era amigo de um amigo e parecia muito tranquilo. Avisou que só iria ficar por um mês, até terminar uma pós-graduação em Marketing e voltaria para a Bahia, sua terra natal. Era dono de um sorriso cativante e com aquele timbre, tiraria qualquer entrevista de letra, ao contrário dela, que quando tensa, sentia a voz falhar até desaparecer.

Relutou em virar a chave, mas ele parecia preocupado. Secou as lágrimas, inventou uma desculpa qualquer, abriu a porta e, também, o coração:

– Tenho pânico de entrevista.

Para ela, ser avaliada era um terror anunciado. Se fosse um relatório, se não fosse presencial, com certeza se sairia melhor, confessou.

– É apenas uma travessia difícil, disse Wudson com sua voz de veludo. Ao invés de gastar sua energia subindo a montanha, pense que você pode contorná-la. Não tem o porquê se desesperar.

Deixa que eu faço as perguntas:

– Qual a sua maior conquista?

– Ter chegado onde cheguei, ampliando minha experiência que está conectada com minha formação, ela disse, desta vez com convicção.  Sentiu-se aprovada, enquanto aguardava a próxima.

– Onde você se vê daqui há cinco anos?

A dimensão do tempo conjugada com o trabalho a pegou de surpresa e ao tentar vislumbrar o futuro profissional, ela travou. Permaneceu em silêncio por alguns instantes, em seguida agradeceu a Wudson e avisou que ia desistir. Ia entregar o apartamento e voltar para a casa dos pais em Muriqui.  Consternado, Wudson tentou demovê-la da ideia.

– Se você se permitir quebrar esta barreira, você vai conseguir, afirmou. Vamos tentar a técnica Star: Situação; Tarefa; Ação e Resultado.

É isso que você precisa. Imagine uma estrela no céu, depois acrescente a técnica. Se você conseguir alinhar suas experiências nesse fio condutor, você vai conseguir responder a qualquer pergunta, sem vacilar. Se você quiser, eu posso colocar um áudio para você escutar durante a noite.

Ela aceitou a sugestão e escutou o áudio horas seguidas, até adormecer. Todas as suas experiências profissionais agora faziam sentido, tinham peso, ganharam musculatura. Escolheu as melhores, formando um mapa onde se via segura e competente para competir no mercado de trabalho. Ia contornar a montanha, e sair do outro lado revigorada, e possivelmente empregada.

O problema é que a noite foi tão intensa que ela não conseguiu acordar. Perdeu a hora, a entrevista, jogou fora uma oportunidade de ouro justo agora que estava preparada…

Mas, quem sabe não havia perdido tudo? A técnica fervilhava em seu pensamento. Mandou uma mensagem para Wudson, agradecendo a ajuda. Dessa vez, não ia desistir.

Correu para a rua, percorreu os mercados até encontrar o camarão seco com aroma mais intenso que jamais havia sentido. Alinhou seu desejo nesse fio condutor. Invocou a Técnica Star.

E a noite, com a mesa posta, abriu uma cerveja gelada.

Ela trouxe o camarão e Wudson trouxe o dendê.

SOBRE A AUTORA

DENISE CRISPUN – Carioca, formada em História, enveredou pelas letras, pelo teatro e pela contação de histórias em diferentes formatos. Colaboradora de novelas, escreve também programas de humor. Sem preconceito linguístico ou de estilo, salta do drama à comédia apenas pulando um parágrafo. Curiosa por natureza, vai detectando os deslocamentos. Sua escrita é feita em movimento. E muitas vezes, enquanto escreve, pedala. Passa por mal educada, pois não costuma escutar quem a chama no caminho. Fala muito sozinha, mas nunca está só, pois vive cercada de personagens.