Era toda quarta-feira. Sagrado. Armínio tomava o rumo da Frei Caneca, cinco quadras distantes do escritório em que trabalhava, uma firma de contabilidade onde cuidava de uma misteriosa seção chamada “ajuste de férias”. Ia direto ao balcão da “A Lisboeta” e pedia seis empadinhas de frango para viagem. O rapaz colocava em um prato de papelão e embrulhava com papel pardo, aquelas que eram consideradas as melhores empadinhas do Rio. De posse de seu tesouro, Armínio empreendia a parte mais difícil. Transportar sem choque o pratinho no interior de um 533, Castelo-Tijuca, sempre lotado. Consentia ser pisado, empurrado, imprensado, mas protegia o pratinho contra qualquer dano às suas frágeis empadinhas. Saltava na Praça Sans Peña, andava até uma rua sem saída e chegava a seu destino. A casa da Lurdinha, sua noiva há cinco anos (fora os quatro de namoro).
A recepção era geralmente fria e mecânica. O pratinho, pego de forma indiferente, colocado sobre a pia da cozinha, às vezes nem era aberto até o dia seguinte. E as empadinhas, volta e meia, acabavam destinadas à Toy, o pequinez enjoado da casa. Mas era sagrado.
Armínio às vezes tentava uma valorização do presente – estão quentinhas – mas, o efeito não era visível. Namoravam como um casal de época, e a época era 1958. Na sala, raramente sozinhos, sob o olhar da mãe, viúva e meio surda.
Um dia, não qualquer dia, mas uma quarta-feira, Armínio iniciou o ritual das empadinhas de forma desastrada. Torceu o pé no meio-fio justamente na hora que chegou à “A Lisboeta”. O pé inchara um pouco e latejava, dolorido. O rapaz do balcão, um novato, atendeu inúmeras pessoas antes dele, ignorou as empadas que ele apontava e fez um embrulho que quase se desfazia só de olhar. Armínio, neste dia, pegou o Castelo-Tijuca mais cheio de sua vida. Enquanto era massacrado por pessoas mal-educadas e suarentas fazia o pratinho flutuar incólume sobre a cabeça. Pouco antes de chegar à Praça Sans Peña desabou um daqueles gloriosos temporais de fim de tarde do verão carioca.
Saltou do ônibus curvado sobre o embrulho, enfiado no interior do paletó. A chuva caía em cheio nas suas costas e a rua da Lurdinha era um rio caudoloso. Desequilibrado, escorou-se em um poste e levou um choque forte, certamente algum fio desarranjado pelo vento. Meio sem fôlego, com a mão formigando, protegia o embrulhinho com fervor. Lurdinha recebeu-o com o ar de enfado usual. Armínio entregou-lhe o pacotinho, miraculosamente íntegro e seco graças aos cuidados sobrehumanos que tivera. Ela, sem olhar, colocou sobre a pia. Armínio, ofegante, encharcado, com o pé agulhando pontadas de dor, pegou o pratinho, abriu a embalagem e, mostrando as seis pérolas da cozinha da “A Lisboeta”, disse:
– Estão fresquinhas.
Lurdinha, com a ponta da unha, levantou a tampa de uma das empadinhas, e disse com desdém:
– Frango de novo?!
Armínio até hoje não sabe explicar o que se passou na sua cabeça naquela hora. Às vezes se arrepende, às vezes se envergonha, às vezes até mesmo se orgulha. Na solidão do seu quartinho na pensão lembra sempre de Lurdinha, seus cabelos longos e loiros, seu narizinho arrebitado e elegante, sua risada clara. Mas a imagem que acaba vindo é sempre a do rosto dela borrado das seis empadas e o pratinho ainda grudado no narizinho arrebitado.
SOBRE O AUTOR
JUSTINO VIEIRA – Engenheiro de Estruturas, Professor de Engenharia na UFF e Arquitetura na PUC-RJ, leitor obsessivo, e que passou a vida inteira às voltas com números e contas, mas aprendeu com Drummond que “a luta com palavras é a luta mais vã.”