Xaveco de Buteco: Conto #7 Cipriani

Joaquinzinho, há três anos era considerado o melhor Maitre do Rio. O diminutivo do nome dava logo um ar de familiaridade que os frequentadores adoravam. Se sentiam “da casa”.

Atento, logo percebeu quando o grupo entrou. Quatro homens: um baixo e atarracado; o outro alto, cabelos quase brancos de tão louro, nitidamente estrangeiro; um com uma pasta executiva e o último, jovem demais para o grupo. Ainda havia uma mulher e era impossível dizer qual a relação dela com o grupo: um pouco com a funcionalidade de uma secretária, às vezes com a desenvoltura de esposa de um deles. Difícil dizer. Tinham reserva para as 21 horas na ala de não fumantes.

Após se acomodarem, Adolfo, um dos garçons mais experientes, perguntou pelos drinques. Joaquinzinho, de longe, atendendo outras mesas, ia observando o grupo para montar o quebra-cabeça, como era seu hábito. A mulher pediu um porto branco gelado, três dos homens uísque, e o jovem, um xerez oloroso. Em meio à tomada de pedidos da mesa 8, excelente, de frente para a piscina; o Maitre, em algum lugar da cabeça, anotou a escolha mais adequada justamente do homem mais jovem.

O antepasto do Cipriani era de uma simplicidade sofisticadíssima: pão e azeite. O melhor pão e o melhor azeite.

Enquanto se certificava que já haviam trazido a conta do americano que jantava com um garoto japonês, Joaquinzinho observava de rabo de olho a dinâmica do salão. O pianista recomeçara, depois de breve intervalo, com  “As Time Goes By”.  A moça da recepção colecionava casais sem reserva no Bar, e o grupo dos cinco experimentava a entradinha, uma joia da culinária, criação inseparável do Chef: uma bolacha de alcachofra, perfumada com arenque e com aspargos fazendo um grafismo alucinante na sua superfície. Merecia estar no MOMA.

Quando terminaram, os homens já haviam consumido meia garrafa do Ballantine’s 12 anos. Joaquinzinho teve certeza de ter ouvido uma menção à Balla 12. Mais uma ficha no seu arquivo mental: expressão um tanto inadequada e vulgar.

Deu um dedo de prosa com o pessoal da 15, músicos de uma orquestra (seria Bávara?), que se apresentariam no Municipal amanhã, e foi tirar o pedido do grupo. O tal do Balla 12.

No rosto o velho sorriso, doze anos de uso, mais novo que o smoking que herdara do falecido Freitas, o ex-Maitre, com quem aprendera tudo. Ou quase tudo, ia perceber mais tarde.

Boa noite! Parecia o primeiro “Boa noite” da noite. Aliás, tão animado e comunicativo que parecia o primeiro “Boa noite” do mundo, logo Deus separara o dia das trevas.

Esse era o lado bom de quem usa expressão tipo Balla 12: eram decididos, na sua maioria. Os três homens do uísque mantiveram sua unanimidade no “Spiedini di Maiale”. Previsível, pensou. O rapaz do xerez “Colombatti in Galera” (novidade no menu, talvez na cidade) e a moça, um pouco hesitante, “Melanzane in Giardiniera”. Uma coisa era certa, pensou Joaquinzinho, ninguém ia se arrepender. As escolhas eram retratos falados dos convivas.

Joaquinzinho anotou os pedidos conforme aprendera com o velho
Freitas. Escolhia um comensal como referência e relacionava com ele o respectivo prato. As demais escolhas seguiam o sentido horário na mesa. Isso propiciava aos garçons o desempenho irretocável na hora de servir. Os pratos eram trazidos ao mesmo tempo, todos cobertos por salvas de prata. Ante uma troca cúmplice de olhares, os garçons simultaneamente descobriram os pratos e cada um estava exatamente em frente a quem o pedira. O sincronismo e a exatidão eram precisos e o efeito, encantador. Bastava algum treino, atenção e uma referência confiável.

Joaquinzinho cuidou de muitas mesas, pequenos detalhes (quem se lembraria que o Porto Vintage estava completamente toldado por falta de decantação?), os problemas na equipe (o novo garçom aparentava tanto esforço para abrir o vinho! Tão deselegante. E eu já cansei de ensinar) e, com uma visão perfeita, dada por anos de experiência, cuidava do conjunto.

Percebeu claramente quando os garçons trouxeram os pratos da mesa de cinco. Quase de costas sabia quando os pratos foram descerrados e… pânico!

Pela primeira vez em muitos anos não havia um único prato no lugar correto. O homem da Balla 12 olhava desconcertado as berinjelas. A moça se interrogava sobre os brochetes do Spiedini e o rapaz do xerez fitava ao longe suas pombinhas. Os garçons atrapalhados e tentando evitar um “quem pediu o quê?” de botequim, equilibravam as cúpulas de prata em uma das mão e os pratos na outra, enquanto bailavam em torno da mesa. Joaquinzinho ao longe, acendendo o charuto do americano, observava aterrado o primeiro fracasso de sua vida na operação de servir. Considerou que se fosse pessoalmente remediar a situação seria pior. Daria a impressão de pane incontrolável.  Ao longo da noite não conseguia esconder a frustração.

Inquiriu os garçons ao fim da jornada, conferiu a comanda e desistiu de entender. Colocou a culpa no garçom que precisava de um macaco hidráulico para abrir o vinho e foi para casa.

No dia seguinte, Joaquinzinho acordou à hora de sempre. Tomou um café já meio almoço. Fritou dois ovos e colocou por cima umas lascas de trufas que o Chef lhe dera. Deu um passeio na praia, comprou o jornal e voltou para casa. Começou a leitura, como sempre, pela coluna do Zózimo. Era um pouco de diversão e muito de obrigação, afinal todos os seus clientes estavam lá vez ou outra. No pé da página, quase no final da coluna, uma pequena notinha. Ontem, no Cipriani, um jantar de negócios, onde o negócio era a privatização das Teles. E se seguia o nome dos cinco.

Joaquinzinho dobrou o jornal, cruzou as pernas lentamente sobre a mesa no centro da sala, e, de estalo, aprendeu uma lição que o velho Freitas não lhe passara:

Em um jantar de negócios públicos, ao fazer a comanda, jamais usar como referência o homem com a mala. Quando os pratos chegam, a mala já mudou de mãos….

Joaquinzinho levantou e foi escovar o smoking, ainda com poeira de ontem. Pela primeira vez achou o velho Freitas, um ingênuo.

SOBRE O AUTOR

JUSTINO VIEIRA – Engenheiro de Estruturas, Professor de Engenharia na UFF e Arquitetura na PUC-RJ, leitor obsessivo, e que passou a vida inteira às voltas com números e contas, mas aprendeu com Drummond que “a luta com palavras é a luta mais vã.”