A roteirista acordou sem ideias, queria ser qualquer coisa nesse dia, menos roteirista. Sempre achou ridículo quando escutava que outros roteiristas procrastinavam, pois diziam estar aprisionados na folha em branco. Ridículo e, no entanto…
A roteirista escovou os dentes e viu escorrer um início de história, mas ao bochechar, deixou escapar a centelha que vislumbrou e a água levou o primeiro parágrafo inteiro.
Reparou na estante curvada da sala, cheia de livros, precisando de um calço, pois assim perigava tombar.
Pensou que um café reforçado a ajudaria, mas a vasilha com as claras se esparramou pela pia e a torrada queimou. Na pressa, ignorou o bilhete preso na geladeira, com algumas instruções importantes para aquele dia que já começara tão pouco inspirado.
O botequim da esquina estava fechado, e do lado de fora da porta ainda cerrada, ela apenas sentiu o aroma do café.
Podia ser pior, pensou, podia ter acordado sem ideias, e riu de sua própria angústia enquanto apertava o passo, ainda sem direção.
Se fosse arquiteta ou instrutora de ioga, modista, paraquedista, arqueóloga, antropóloga, fisiculturista, calista, confeiteira, engenheira, professora, diplomata, anestesista, não estaria em tal situação.
Não lembrava por que escolhera tal profissão. Teria sido após ter ido ao cinema pela primeira vez? Se fosse assim, quem sabe poderia morar então na terra de Oz? Aí, aqueles sapatinhos vermelhos, a casa a voar no rodamoinho, a bruxa que derreteu e virou uma poça bem diante dos seus olhos… Ou quem sabe, talvez tenha encontrado a centelha nos romances que leu. Nas ilustrações de bico de pena, nas tristes histórias dos irmãos Grimm, nos desencontros de amor, mas principalmente nas injustiças que testemunhou em inúmeros romances de formação. Queria consertar o mundo (Ah! Isso ela queria.) desde sempre. Era capaz de defender até as moscas capturadas pelas línguas frias dos sapos, ignorando a cadeia animal. Não tolerava discursos de ódio, preconceito e leviandades. Mas, isso não seria motivo suficiente para viver de escrever e ganhar a vida arquitetando frases e criando personagens.
A roteirista caminhava sem rumo pelas ruas da cidade enquanto seguia martelando a questão.
Por quê?
Ora porque talvez tenha intuído que escrevendo seria mais fácil enfrentar os percalços da vida. Será?
Imediatamente lhe veio uma imagem, anos atrás…
Véspera de um aniversário importante, uma festa dançante e ela havia comprado uma roupa nova para usar. Um macacão de lurex, de fundo preto, com flores em tom de ferrugem que formavam um caleidoscópio, e que lhe caía muito bem, coisa rara para seu corpo franzino e ainda desengonçado.
Tinha uma playlist na cabeça, sabia exatamente o que ia tocar, ou melhor, imaginava. Assim como imaginava a cena com diálogos curtos e o beijo que ia ganhar. Tinha tudo arquitetado e os cachos surpreendentemente no lugar. Mas, uma discussão pôs tudo a perder. Culpa da língua afiada, afirmou a mãe, e não pôde fazer nada…
Ou quem sabe?
Escreve uma carta, vaticinou a mãe, tenta explicar o que sente, da próxima vez você será compreendida. Mas, uma carta para o pai?
Kafka, esse sim, tinha seus motivos, e o inverno severo de Praga que com certeza o inspirou a se transmutar num arauto da solidão. E dessa incompreensão nasceu a Alta Literatura, forjada com nobres metais e escrita com pena implacável.
Já a roteirista… Uma festa dançante? Deve ter sido outro, o motivo. E com isso, voltamos cinco casas para trás.
O sapato apertado a fez desistir da caminhada sem rumo. Estava perto do mar. Decidiu molhar os pés, vislumbrar o horizonte sem pressa, afinal, o dia já estava perdido.
O mar, azul e verde, com trechos escuros, profundos, convidava ao mergulho. Imagine ficar sem tocar os pés, apenas flutuar…
O que deu errado é que não sabia nadar. Não o suficiente para enfrentar as ondas que a surpreenderam. Bebeu muita água, mas sobreviveu, pois não tinha arriscado ir longe demais.
E ao sentar-se na areia para descansar, do nada, eles apareceram; a lagosta de tentáculos afiados, perseguida por um polvo de nove metros de comprimento. Atrás do polvo, um cardume de peixes serras, que tentavam destruir a embarcação. O mastro já estava partido, e pendia perigosamente, ameaçando virar.
Com as roupas encharcadas, um homem segurava firme no leme, enfrentando as ondas, determinado. Uma barba espessa cobria-lhe o rosto vincado. Seria Nemo? Se fosse, teria em torno de 170 anos ou até mais. Estaria então, conservado em salmoura? Parecia bem, embora abatido. Segurava uma caixa, com certeza ali havia documentos importantes, que deviam ser protegidos. E enquanto olhava para o céu, o capitão repetia: Nada é tão profundo, apenas é o que é…
Um vendedor de picolé tocou-lhe no ombro, despertando a roteirista do torpor criativo em que se encontrava. Estava quase terminando a abertura, finalmente uma boa sinopse, faltava apenas um toque de terror sobrenatural que fecharia bem o argumento.
– Senhora, o céu tá carregado. Vai cair o mundo. Melhor a senhora se proteger.
Já em casa, colocou a chaleira no fogo e enquanto esperava a água ferver, foi anotando o que recordava.
Foi então que viu o bilhete da filha preso na geladeira: Feira de ciências. IMPORTANTE. Vou criar eletricidade a partir de batatas.
– Batatas elétricas. Isso é que é fazer mágica! E sorriu.
Ao pegar a bolsa para sair, esbarrou na estante, e alguns livros tombaram no chão. Mais tarde, concluiu, o mais importante agora são as batatas.
Na página aberta no chão, grifado em vermelho, um parágrafo pedia atenção:
Não se curve, não dilua nada, não tente tornar lógico, não edite sua alma de acordo com a moda. Pelo contrário, siga implacavelmente suas obsessões mais intensas. (Franz Kafka)
SOBRE A AUTORA
DENISE CRISPUN – Carioca, formada em História, enveredou pelas letras, pelo teatro e pela contação de histórias em diferentes formatos. Colaboradora de novelas, escreve também programas de humor. Sem preconceito linguístico ou de estilo, salta do drama à comédia apenas pulando um parágrafo. Curiosa por natureza, vai detectando os deslocamentos. Sua escrita é feita em movimento. E muitas vezes, enquanto escreve, pedala. Passa por mal educada, pois não costuma escutar quem a chama no caminho. Fala muito sozinha, mas nunca está só, pois vive cercada de personagens.