Às 07:00. O despertador toca pontualmente na casa da família Oliveira. Essa cena se repete todos os dias há anos. O sobrenome deveria mudar para Tradição.
Na casa de Dona Benta e Seu Dito tudo segue nos conformes. Cada movimento é calculado. O despertador toca às 07:00 e em cinco minutos; ela está sentada na cama, calça os chinelos dispostos simetricamente lado a lado e se levanta. Dirige-se ao banheiro, fecha a porta, escova os dentes, penteia o cabelo e faz toda a rotina de toalete. Quando a esposa sai do banheiro e vai em direção à cozinha, Seu Dito sabe que chegou sua vez de se arrumar para encarar mais um dia. Segue ao toalete e começa o ritual diário: escova os dentes, faz a barba, penteia os cabelos, olha o visual no espelho. Pronto! Em direção à cozinha é recebido pelo aroma delicioso do café fresco de Dona Benta. Ah, como ele adora aquele perfume matinal de todas as manhãs! Aquela cena se repete há uns 40 anos e, mesmo assim, é tão reconfortante. Ao chegar, os dois sentam-se à mesa. Seu Dito enche a caneca, que a netinha havia presenteado com a frase “Eu amo o vovô”, e dá uma bela golada do caldo preto quentinho acompanhado de uma fatia de pão. Dona Benta também se delicia da comunhão matinal. Ela sempre prezou em compartilhar as refeições em família. Quando os filhos eram crianças, até eles saírem de casa, fazia questão de reunir todo mundo ao redor da mesa.
O dia transcorria do mesmo jeitinho de sempre, até que o barulho da campainha irrompe a rotina. Eles se entreolham. Aguardam. Talvez fosse engano. A campainha toca novamente e Dona Benta resolve atender. Ela caminha em direção à janela, abre devagarinho e avista sua vizinha: a Zefa. Abre a porta e vai até o portão com as chaves na mão. Ao chegar, Zefa vai logo falando:
– Bom dia, Benta! É rapidinho. Sei que estão tomando café da manhã. Quero só entregar um pouco de pudim de pão que fiz ontem.
– Bom dia, Zefa! Não quer entrar um pouco? Toma café com a gente.
– Não, o João está me esperando. Depois a gente conversa.
– Obrigada, querida! Depois a gente se fala. Até mais.
Elas se despedem. Dona Benta volta para a cozinha e acomoda o pote com o pudim de pão à mesa e comenta:
– Era a Zefa. Ela trouxe pudim de pão fresquinho pra gente. Pega, meu Bem.
– Que gentil! Estava mesmo querendo comer um doce. Parece até que ela adivinhou.
A vontade de Seu Dito era tão grande, que pegou o maior pedaço sem rodeios. Levou o doce à boca e quando engoliu o primeiro pedaço… uma explosão de sentimentos invade seus pensamentos. Aquele sabor, aquele cheiro, o transportaram para as memórias da infância, na cidade de Itabira, Minas Gerais, onde nasceu e cresceu com seus 5 irmãos. Lá, ele vivia na roça, levava uma vidinha simples, mas era feliz. Nunca passou fome. Só comia o básico. Foi comer doce na sala de aula. Na época, cursava a segunda ou terceira série, não lembra bem, só lembra mesmo da professora Zulmira. Tão dedicada e afetuosa. Um dia fez uma surpresa: levou uma travessa de doce que havia preparado. Ao retirar o pano de prato de cima da travessa foi logo falando em voz alta “Esse final de semana fiz tanto pudim de pão lá em casa, que estava sobrando, então trouxe para vocês”. Naquele dia, o pequeno Benedito e seus colegas se deliciaram com a sobremesa. Ao perceber o brilho nos olhos das crianças, ela repetiu o gesto outras vezes, sempre com a mesma justificativa. Só anos mais tarde, Dito foi perceber que a professora inventara aquela “mentira”, para não acanhar seus queridos alunos.
Seu Dito guardou o pequeno gesto da professora com muito carinho. Ele nunca se esquecera dela. Quando recordava a infância, sempre lembrava do sorriso carinhoso da tia Zulmira. Agora ele estava tomado de tantos sentimentos: bondade, amorosidade, compaixão, saudades, que… de repente, uma lágrima escorre pelo rosto enrugado e se acomoda entre os vincos da pele. Dona Benta, preocupada, pergunta:
– Que houve, meu Bem? Está tudo bem?
– Não se preocupe. Só estou muito feliz. Lembrei que a minha vida é tão boa. Obrigada por tudo, meu Bem.
Eles se entreolham. Trocam afagos e sorriem sinceramente, com a certeza de que eram felizes.
Ao longo do dia, Seu Dito sorriu o tempo todo, feliz pela lembrança.
Silenciosamente repetiu inúmeras vezes:
– Muito obrigado pelo pudim, tia Zulmira! Muito obrigado.