Terra – Ano 2040
Tudo mudou por aqui. Duas décadas após a pandemia, o mundo agora é outro. Mas por incrível que pareça, Woody Allen ainda está vivo. Também, com aquele cérebro…
E se ainda tiverem críticas por sua conduta, favor mandar para o redator- chefe. Eu tive a sorte de entrevistá-lo. Minha primeira pergunta: Queria saber como foi que ele previu tamanha revolução?
Se você é muito jovem, não deve estar acompanhando. Eu me refiro a película: Tudo o que você sempre quis saber sobre sexo, mas tinha medo de perguntar. Se não viu, tente encontrar num sebo virtual. Está tudo lá.
A mecânica do sexo, vista por dentro, o cérebro mandando mensagens para o órgão sexual: Prossigam! Aí vem o beijo, aguentem! Os espermatozoides de plantão, enfileirados, recebendo ordens para entrar em ação: Ativar centro de prazer. Cuidado com a respiração. Prosseguir com a ereção. O momento decisivo se aproximando e o medo de ir lá para fora cumprir a fatídica missão: chegue no óvulo ou morra tentando. Hora de fazer bebês! E ainda havia um bônus da cena: um religioso tentava impedir que o ato se consumasse, aprisionando a consciência numa cadeira, fazendo-a sentir na carne a culpa cristã. Não conseguiu. Alívio.
Minha segunda pergunta para o Sr. Allen: Em que momento o senhor percebeu que poderia haver uma máquina capaz de substituir o procedimento acima referido? De onde veio a ideia de que seríamos capazes de trocar o ato em si por uma máquina de prazer? Sem contatos? Numa cabine discreta, capaz de deixar fluir os desejos secretos de cada um?
Cena do filme de Woody Allen
Eis a resposta de Allen:
– Sexo alivia as tensões; amor as cansa. Eu apenas sugeri na ficção uma outra possibilidade, afirmou o cineasta. Um plano B, por assim dizer, caso o ser humano esgotasse todas as chances de um relacionamento tradicional. E aí veio o vírus. Juntamos o fracasso do homem com uma nova situação, nunca imaginada. O fato é que ou nos adaptamos ou sucumbimos. Veja o exemplo dos dinossauros. Por isso a máquina tem funcionado tão bem. Não substitui totalmente, mas é viável e dá prazer. E completou:
– O sexo sem amor é uma experiência vazia, mas como uma experiência vazia é uma das melhores.
Em seguida, ele desabafou: falou dos casamentos, dos mal-entendidos, das traições:
– É muito difícil fazer sua cabeça e seu coração trabalharem juntos. No meu caso eles não são nem amigos.
Senti que ele precisava falar. Confiou em mim, revelando alguns traumas.
– A única maneira de ser feliz é gostando de sofrer.
Contou da família judia do Brooklin onde nasceu, da mãe onipresente que colocou no alto da tela no filme Contos de Nova York, do inesquecível sanduíche de pastrami da Carnegie Deli, em Manhattan, e da sua dificuldade em acreditar em Deus:
– Se realmente Deus existe, não creio que ele seja mau. Mas o mínimo que se pode dizer é que ele obteve péssimos resultados. Para você eu sou ateu, para Deus eu sou a real oposição, afirmou.
E finalmente falou da fixação com o sexo:
– Só existem duas coisas na vida. A primeira é o sexo e a segunda eu não me lembro.
Comentou por alto das batalhas judiciais pelas quais passou, da difícil relação com os filhos… Eu ainda tinha muito a perguntar, mas observei uma lágrima furtiva correndo pelo seu rosto marcado. Dei alguns minutos para ele se recompor e perguntei:
– O senhor acha que seu trabalho tem algum significado importante? De pronto, ele me respondeu:
– Não quero alcançar a imortalidade com meu trabalho, mas sim não morrendo. Não que eu tenha medo de morrer, só não quero estar lá quando isso acontecer.
Não consegui conter um sorriso, queria continuar com a entrevista, mas ele disse que estava cansado de tantas lembranças.
Eu por mim ficaria lá escutando, horas e horas. Nunca me importei com as fofocas, com o que ele fez ou deixou de fazer. Não julgo se foi certo ou errado, só sei que ao acompanhar suas histórias engraçadas ou trágicas, consegui encontrar uma voz: Annie Hall, Interiores, Crimes e Pecados, A rosa púrpura do Cairo, Poderosa Afrodite, Zelig, Celebridades, Dirigindo no escuro, Você vai conhecer o homem dos seus sonhos, Meia-noite em Paris, Um dia de chuva em Nova York…
As gotas da chuva que caía me alcançaram. Anoiteceu. Foi então que escutei os primeiros acordes de Misty. E enquanto Woody se distanciava, embalados pela música, inúmeros personagens se descolavam a partir de sua sombra de homem miúdo, agora ainda mais curvado pelo tempo que magicamente ele soube driblar.
SOBRE A AUTORA
DENISE CRISPUN – Carioca, formada em História, enveredou pelas letras, pelo teatro e pela contação de histórias em diferentes formatos. Colaboradora de novelas, escreve também programas de humor. Sem preconceito linguístico
ou de estilo, salta do drama à comédia apenas pulando um parágrafo. Curiosa por natureza, vai detectando os deslocamentos. Sua escrita é feita em movimento. E muitas vezes, enquanto escreve, pedala. Passa por mal educada,
pois não costuma escutar quem a chama no caminho. Fala muito sozinha, mas nunca está só, pois vive cercada de personagens.