Carlos Magno, na época apenas Carlos, passara a manhã como mais gostava: caçando com seu falcão preferido, vendo os jovens treinando para a Justa da Semana Santa e cavalgando Supino, seu corcel estimado.
À hora do almoço, solitário como raramente acontecia, lavou o rosto rapidamente, sentou-se à mesa, destacou uma coxa da lebre que caçara e começou a comer.
Já ia pegando a taça de vinho quando se lembrou dos conselhos de seu Confessor. O ambiente na Corte andava pesado, falava-se muito em inimigos infiltrados no próprio Palácio, riscos por todo lado.
Gritou pela Aia pedindo que mandasse o Provador. Geralmente quem provava seus alimentos era um antigo escravo, ainda do tempo de seu pai, e achou suspeito quando surgiu um jovem que não conhecia, mas a Aia assegurou-lhe que era de confiança. Avaliou apenas a limpeza do rapaz, afinal iam beber no mesmo copo, passou-lhe a taça e esperou.
O jovem bebeu e, aparentemente, sobreviveu o que era tudo que lhe importava, entretanto o rapaz, muito sério e compenetrado, olhou-o, rodando a taça de uma forma estranha que nunca presenciara e cheirou o vinho com uma insistência tão longa que Carlos temeu um veneno novo e sutil. Enfim disse:
– Taninos muito singulares e simétricos; uma barrica tênue, porém incontornável; frutos vermelhos diversos dos nossos bosques, maduros e consistentes. Certamente será bem-sucedido com essa lebre que o Senhor tem à sua frente, apesar da expressão um tanto excessiva da mostarda. Sua Alteza pode beber agora ou esperar até 1270.
Tão logo almoçara, Carlos mandou decapitá-lo. Que garoto irritante!
SOBRE O AUTOR
JUSTINO VIEIRA – Engenheiro de Estruturas, Professor de Engenharia na UFF e Arquitetura na PUC-RJ, leitor obsessivo,
e que passou a vida inteira às voltas com números e contas, mas aprendeu com Drummond que “a luta com palavras é a luta mais vã.”