Seria um crime, além de grave ofensa aos leitores, iniciar este texto citando a primeira frase
do livro As intermitências da morte, de José Saramago, lançado em 2005. Fazendo uma busca
rápida pela rede mundial de computadores, é possível deleitar-se com dezenas de resenhas da obra,
todas elas principiadas pelo seu célebre trecho de abertura. Para evitar o clichê, para escapar do
perigoso alçapão de repetições vazias da internet e, principalmente, para impedir que a competente
publicação do autor português seja toda vez lembrada apenas por ostentar um brilhante ponto de
partida, começo o presente escrito sem citar a construção exordial e, sim, criticando quem assim
faz, o que, aparentemente, pode ser um contrassenso.
Incomodada com o tratamento que recebe dos seres humanos, a morte decide não mais dar
as caras em um certo país. Obviamente, o caos se instala no lugar, gerando reações diversas da
população. A premissa de As intermitências da morte aponta rapidamente para um enredo
centrado no realismo mágico, entretanto, interessante destacar que o livro possui dois focos
distintos, separados, sutilmente, pelo recebimento de uma carta em envelope arroxeado.
“É assim a vida, vai dando com uma mão até o dia em que tira tudo com a outra.”
Laureado com o Nobel de Literatura em 1998, José Saramago é, inegavelmente, um dos principais
responsáveis pelo reconhecimento da literatura em língua portuguesa no resto do mundo, tendo sua
obra, inclusive, sido adaptada em Hollywood. Nascido na pequena aldeia de Azinhaga, o escritor
criou um estilo único, sendo seus escritos exaltados tanto pela forma, quanto pelo conteúdo. O
encadeamento de narrações, diálogos e parágrafos, concatenado por uma pontuação que foge da
habitual, expõe uma ousada criatividade, que permite ao leitor uma experiência singular de
sentimento e ritmo.
Em que pese a riqueza das criações de José Saramago, dentre as quais estão Memorial do
convento e Ensaio sobre a cegueira, é inegável que olhares menos atentos possam sentir dificuldade
em acompanhar o desenrolar de suas histórias. Neste sentido, As intermitências da morte surge
como um excelente portal de entrada para o trabalho do autor, pois carrega suas principais
características, em um texto fluido, que não negligencia a riqueza. Mais que uma reflexão sobre o
morrer, é uma análise profunda e ácida da sociedade, da política, das instituições e da hipocrisia. E a
ironia é utilizada em prol do contexto, sem exageros, sem ataques desnecessários, sem melindres.
“A morte conhece tudo a nosso respeito, e talvez por isso seja triste. Se é certo que nunca
sorri, é só porque lhe faltam os lábios, e esta lição anatômica nos diz que, ao contrário do que
os vivos julgam, o sorriso não é uma questão de dentes. Há quem diga, com humor menos
macabro que de mau gosto, que ela leva afivelada uma espécie de sorriso permanente, mas
isso não é verdade, o que ela traz à vista é um esgar de sofrimento, porque a recordação do
tempo em que tinha boca, e a boca língua, e a língua saliva, a persegue continuamente.”
Confesso ter uma predileção drástica pela primeira parte do livro, talvez pela forma
arrebatadora com que o universo é introduzido ao leitor. O desejo, ao chegar aproximadamente no
meio da história, é de que ela não acabe nunca ou, pelo menos, se arraste por mais umas centenas de
páginas. A bagunça daquele país que se vê à beira do colapso geral porque ninguém morre é um
delicioso convite a pertinentes questionamentos contemporâneos. A falência das empresas
funerárias e das seguradoras, o desespero da Igreja pela extinção das ressurreições, o surgimento de
um poder paralelo criminoso, a impotência do rei e seus governantes diante de uma força realmente
mais poderosa que seus cargos e a tensa relação do país com as áreas limítrofes são representações
críveis do mundo atual, que flerta diariamente com a barbárie.
A transposição para a segunda parte da obra ocorre quando a morte surge como uma
personagem, usando foice e tudo mais, comunicando, por meio de carta, que voltará ao trabalho,
porém, de outra maneira. E é cumprindo seu novo modus operandi, que a morte é surpreendida por
um evento inédito que a levará a meditações sobre a sua própria razão de ser. Um tom filosófico
toma conta da narrativa e Saramago afasta as discussões estruturais, para focar num íntimo quase
humano de sua protagonista esquelética. Apesar de preferir a metade inicial, saliento, e não poderia
deixar de fazê-lo, que As intermitências da morte tem um desfecho maravilhoso, inesperadamente
doce.
“Cada um de nós tem a sua própria morte, transporta-a consigo num lugar secreto desde que nasceu, ela pertence-te, tu pertence-lhe.”
Recomendo a obra principalmente para quem ainda não conhece José Saramago, alertando que duas coisas poderão acontecer: uma antipatia antecipada que causará abandono ou uma paixão
arrebatadora que virará amor depois de outras leituras do autor. Por fim, faço questão de não terminar essa resenha com a frase de encerramento do livro, como é de costume por aí. Concluirei o
texto apenas criticando quem procede de tal maneira e desejando que amanhã não morra ninguém.
Título: As intermitências da morte
Autor: José Saramago
Editora: Companhia das Letras
Número de páginas: 208
Gênero: Realismo mágico