O projeto Quarentena de Contos apresenta histórias de terror inéditas escritas por autores do Cinema de Buteco durante a quarentena do coronavírus. Saiba mais sobre o projeto e leia todos os contos aqui.
Cada texto foi inspirado por três filmes diferentes, de gêneros diversos. Você consegue adivinhar todas as referências no conto de Lucas Paio?

Se naquela tarde de novembro eu decidira me entregar às preces, não era bem por devoção, mas por desespero.
Maria da Graça ardia em febre pelo oitavo dia. Eu era um pai de mãos atadas, sem recursos para levá-la ao hospital da capital depois que o médico do posto de saúde de Santa Clara dos Perdões me disse que sua moléstia era inexplicável, e que tudo o que podia receitar era novalgina, paciência e reza.
Mas minha fé andava abalada há muito tempo, desde que Lurdinha fora tirada de nós por uma imperdoável leucemia. Como um Deus piedoso e magnânimo podia ter permitido que a morte chegasse a uma mãe tão jovem, a uma esposa tão querida? Como, agora, podia deixar uma criança de cinco anos num estado de fraqueza tal que ela sequer podia balbuciar a palavra “papai”?
Apesar de tudo, eu estava ali de coração aberto. Àquela hora do dia eu era a única pessoa na Igreja Matriz de Santa Clara, de joelhos no genuflexório tentando encontrar as palavras certas. Podia imaginar Lurdinha rindo da minha cara e dizendo “Ai, amor, quem te viu, quem te vê”. Me sentia um otário ao esperar que um Deus que nunca me dera ouvidos tivesse compaixão por uma garotinha febril – mas qual outra escolha eu tinha, a não ser implorar por um milagre?
De olhos fechados, fiz o melhor que pude para esconder o ceticismo e me mostrar humilde e pio. Senhor, sussurrei aos céus e a mim mesmo, venho aqui para, encarecidamente, pedir ajuda. Eu apertava forte uma mão contra a outra, como se isso enfatizasse minhas súplicas. Ajude a Maria da Graça a sair dessa. A ser curada dessa doença sem sentido. Por favor, meu Deus, não tire de mim a minha filha como tirou a minha amada esposa há tão pouco temp… PÁ!
Um barulho forte, como se um objeto pesado tivesse caído no chão, interrompeu minha prece e me desconcentrou. Abri os olhos e espiei ao meu redor. A igreja continuava vazia e nem o padre parecia estar por perto. Talvez o vento tivesse derrubado uma estatueta ou batido uma porta com força. O Jesus barroco me encarava impaciente acima do altar; baixei a cabeça e voltei a rezar em silêncio.
Senhor, peço desculpas por minha ausência desde que Lurdinha se foi, e venho aqui hoje, humildemente, pedir que ajude a curar a minha filha, Maria da Graça, e serei um devoto eternamente grato ao Senh… PÁ, PÁ, PÁ!
O mesmo barulho, três vezes seguidas desta vez, ecoou pela igreja e deixou meu coração acelerado. Aquilo não era um objeto caindo, era alguém golpeando alguma coisa com força, talvez um martelo, quem sabe um machado. A razão mandou meu coração manter a calma: estavam só pendurando um quadro, ou abrindo uma janela emperrada, consertando uma cadeira. O que mais podia ser? Um ato violento em plena igreja? Não, claro que não. Por via das dúvidas, fiz o sinal da cruz.
Nisso, uma voz esbravejante, masculina, ressoou pela igreja sem que eu conseguisse entender o que tinha sido dito. Olhei em volta, encucado: o lugar continuava vazio. Passos apressados foram aumentando de volume, e aí percebi que os sons vinham de baixo, do subsolo da igreja.
Quando a figura de batina surgiu no altar, vinda de uma escada que levava ao andar inferior, eu ainda estava de joelhos e mãos juntas, mas com os olhos arregalados. Ao me ver, o padre parou onde estava e ficou sem reação por alguns segundos, até que voltou a caminhar a passos firmes na minha direção.
– Estamos fechando em dois minutos. Termine as suas preces – e desapareceu por uma porta lateral. A atitude me pareceu um pouco inusitada, mas sua rispidez e irritabilidade eram notórias em Santa Clara dos Perdões, e achei por bem não desobedecer.
Nos dias seguintes, duas coisas aconteceram. Primeiro, e mais importante, foi que a febre de Maria da Graça baixou, ela voltou a ter forças para comer e, em dois dias, já estava serelepe, brincando de amarelinha na praça como se a morte não tivesse lhe batido à porta há tão pouco tempo. Se a cura veio da reza ou se a doença inexplicável era só uma virose passageira, eu não sabia e nem via necessidade de saber. Minha filha estava bem, e isso bastava.
A outra coisa foi que, numa dessas coincidências que deixam a gente com a pulga atrás da orelha, ouvi histórias de duas pessoas diferentes que me soaram, digamos, familiares. Dona Geralda, cantineira da escola estadual onde eu lecionava, disse que os problemas cardíacos do marido sumiram da noite pro dia desde que ela rezou uma novena na Igreja Matriz. E o Mendonça, parceiro das noites de truco, nos confidenciou, entre uma cerveja e outra, que o segredo pro seu time enfim sair da Terceira Divisão foram as velas que ele acendeu na igreja, pedindo a Deus que fizesse o maior de seus milagres. Dei risada do Mendonça como todo mundo à mesa, mas na manhã seguinte, me sentindo um ingrato perante a Deus, resolvi voltar à igreja para agradecer o que Ele tinha feito por minha filha.
Após fitar os olhos tristes do Jesus barroco, baixei a cabeça, cerrei as pálpebras e murmurei: Senhor, venho aqui à Sua casa agradecer por ter curado a Maria da Graça e ouvido minhas preces num momento tão difíc… PÁ!
De novo aquele barulho me atrapalhando a reza – um ruído retumbante, de metal batendo em alguma coisa, lá embaixo. Será que o subsolo da igreja estava em obras? Uma ratazana, um pombo penetra derrubando relíquias? Ou o padre tinha instalado uma câmera escondida e só esperava eu fechar os olhos pra me sacanear? Olhei ao redor e a igreja estava vazia como da outra vez, exceto por uma senhora de véu, ajoelhada em frente ao confessionário, contando ao padre seus pecados da semana.
Resolvi tirar a prova: se era pegadinha, eu precisava saber. Baixei a cabeça, fechei os olhos… e nada. Assim permaneci por uns cinco minutos e nada aconteceu. Mas foi só eu continuar a minha prece de gratidão – em pensamento, sem sequer mover os lábios – que um novo som me gelou a espinha.
Muito obrigado, Senhor, por ter curad…
– Paaaaaaaaraaa!!
Um grito agudo. Fraco, distante, mas claramente um grito. Não vinha da velhinha no confessionário, muito menos do padre, e tampouco era guincho de rato. Havia alguém no subsolo. Onde fica a cripta da Igreja Matriz.
Eu podia ouvir Lurdinha me dizendo: “Ih, amor, não mexe com isso. Não é nada da sua conta, termina a reza e vai embora”. Mas não fui. Não conseguia ir enquanto não entendesse o que é que estava acontecendo. Lembrei da minha visita anterior e da mal explicada rispidez do padre. Ele estava escondendo alguém ali. Uma mulher, ou… uma criança.
Olhei de novo pro confessionário. A velhinha de véu continuava segredando seus pecados e parecia não ter notado a voz infantil. Surdez dela, ou era eu quem estava ouvindo coisas? Só tinha um jeito de descobrir.
Contrariando o conselho da minha Lurdinha imaginária, caminhei furtivo, mas ligeiro, e num pulo cobri a distância que separava o banco da igreja e o topo da escada que levava à cripta. Um cordão amarrado a dois pedestais sinalizava que os curiosos não eram bem-vindos, mas não me impediu de saltá-lo e descer os dois lances de escada que davam no portão da cripta.
Era como se outro universo começasse ali. Atrás das grossas grades havia um longo e escuríssimo corredor, mas eu só conseguia ver os objetos mais próximos do portão: duas urnas funerárias e um caixão imponente, que devia abrigar um dos velhos coronéis da cidade. Barrando a entrada de enxeridos como eu, um cadeado me chamou a atenção. Não era um objeto antiquíssimo, trambolhoso e enferrujado, mas um modelo novo da Samsonite. Quando encostei a cabeça na grade, tentando acostumar a vista ao breu lá de dentro, senti um cheiro francamente desagradável e pensei instintivamente: Meu Deus… E do outro lado da cripta, para o meu assombro, veio novamente a voz infantil:
– Quê que foi?!
Não tive nem tempo de tentar entender.
– A cripta está fechada para visitação – a voz do padre surgiu atrás de mim. Quando me virei, sobressaltado, ele já descia a escada, puxando a batina pra cima para não tropeçar. – Achei que isso estivesse claro. Coloquei um cordão de isolamento para ninguém vir aqui embaixo.
– Desculpa, padre, eu… só quis vir aqui pra ver o…
– Ver o que?
– Ahm, dar uma olhada, é que eu escutei um… – quanto mais eu falava, mais me embananava.
– Escutou o que? – seu tom era desafiador, e ele estava agora a dois palmos do meu nariz. Pra sair dali agora, só se eu cometesse o pouco respeitoso ato de empurrar o padre com a mão.
– Escutei… um barulhinho, quando eu tava…
– Quando você estava rezando?
– Isso.
Será que tinha sido mesmo pegadinha do padre? Não era isso que as sobrancelhas arqueadas e o esgar desgostoso davam a entender. Espremido entre a grade e um padre que me dava calafrios, eu ouvia de novo a voz de Lurdinha na minha cabeça – “Eu bem que avisei, amor!” – e imaginava a manchete do jornal do dia seguinte: “Bisbilhoteiro é encontrado morto no porão da Igreja Matriz”.
O padre pôs a mão no bolso da batina e tirou não um machado ou um martelo, para meu alívio momentâneo, mas uma chavinha. Enfiou-lhe no cadeado Samsonite e abriu a tranca, enquanto eu tentava entender o que ele pretendia. Com o cadeado nas mãos e o portão da cripta aberto, ele me perguntou:
– Você acredita em Deus?
– Eu? Que pergunta, padre. Claro que acredito – eu tentava parecer o mais convincente possível.
– Então não precisa ter medo do diabo – e me apontou o interior da cripta, não deixando dúvidas sobre sua intenção de me fazer entrar.
Eu estava entre a cruz e a espada, quase que literalmente. Tentar salvar quem quer que estivesse ali na cripta e correr o risco de ser enclausurado por um padre sinistro, ou admitir a covardia e dar no pé? Um impulso me levou a pensar: Me ajuda, Senhor. E nisso o padre puxou meu braço, estendeu minha mão e colocou nela o cadeado.
– Eu só quero que você veja. Antes de me julgar.
Talvez por heroísmo, talvez por curiosidade mórbida – ou mais provavelmente por não querer parecer covarde na frente de um sexagenário –, deixei o medo do lado de fora da cripta e entrei.
Liguei a lanterna do meu celular, já obsoleto naquela época. A luz era fraca, mas me ajudava a entender onde estava pisando. O longo corredor ocupava todo o subsolo da igreja, e eu ainda não conseguia ver até o final. As paredes de tijolos descascados mostravam a idade e a falta de manutenção. No chão, perto das paredes, alguns caixões de mármore e suas respectivas lápides com sobrenomes famosos de Santa Clara dos Perdões. A qualquer instante eu esperava tropeçar num osso largado por ali, e teria sido até mais apropriado se o lugar estivesse abarrotado de crânios e fêmures, mas o chão permanecia livre de obstáculos. O que o lugar tinha de mais macabro era o ranço azedo que vinha lá do fundo. Porque não era um cheiro de cadáver, mas de gente viva.
– Tem alguém aí? – minha voz ecoou, sem resposta. Eu estava a meio caminho do outro lado da cripta e minhas pernas bambeavam, traindo a coragem que eu teimava em querer sentir. Virei pra trás e o padre continuava lá, me olhando sisudo pela grade. “Não precisa ter medo do diabo”, havia me dito. Ele só podia estar de brincadeira comigo… certo?
Pai Nosso que estás no céu, comecei em pensamento, santificado seja o Vosso nome…
– O quê qui cê qué?! – veio o grito agudo, e quase deixei cair o celular da mão. Apontei a lanterna na direção da voz, mas o facho não iluminava mais do que três metros à minha frente.
– Quem tá aí? – optei por perguntar, dando mais uns passos lentos. – Qual é o seu nome?
Nada.
Caminhei mais alguns passos, que no silêncio da cripta faziam um barulho indisfarçável. Antes que eu enxergasse quem estava ali, veio a voz de novo. Seu tom agora não era de raiva ou agonia, mas de desalento.
– Me deixa em paz.
E enfim meu celular iluminou a figura que estava no fundo da cripta, sentada no chão com a cabeça baixa e as mãos tapando os olhos para protegê-los da luz. Era uma criança. Um menino.
Deus do céu, pensei no ato. Foi quando ele tirou a mão da cara e me lançou um olhar furioso, enchendo os pulmões para esgoelar:
– Para de gritá no meu ovido! O quê qui cê qué comigo?!
Ele não tinha mais que dez anos de idade e parecia não cortar o cabelo há anos: ensebados e despenteados, os fios escorriam pela cara e lhe davam uma aparência quase selvagem, algo ainda mais acentuado pelos olhos raivosos. O cheiro ruim que eu sentira ao entrar na cripta agora me atacava as narinas sem dó. E não vinha de nada cadavérico, mas dos excrementos frescos que estavam logo ali, sobre um jornal ao lado dele.
O menino me encarou por alguns segundos e de repente puxou para perto de si um objeto de metal, que inesperadamente colocou na cabeça. Era uma panela, que ele agora usava como se fosse um chapéu.
– Eu não gritei no seu ouvido – tentei contato.
– Gritô sim! Tá gritano o tempo todo, desde qui ocê veio aqui pela primêra vez, e eu num sei o quê qui cê quer! Sai daqui, me deixa em paz!
O coitado estava confuso e claramente me confundia com outra pessoa. Reiterei que nunca tinha estado ali antes. Ele levantou a panela da cabeça e pôs a mão no rosto, tentando impedir que o facho do meu celular lhe doesse os olhos. Virei a lanterna para o chão para não incomodá-lo. Em retorno, ele acalmou o tom.
– Veio sim, moço. Não na crípita, mas na igreja. Num faz muito tempo. Veio e gritô no meu ovido preu ajudá a sua filha que tava duente. Eu ajudei. Agora ocê voltô e continua gritano, mas nem tá pidino nada.
Agora era eu quem estava confuso.
– Eu não gritei, eu rezei. Em silêncio. Eu vim na igreja e rezei.
– Rezô, claro que rezô! É o que todo mundo faz. Rezá, rezá, rezá! Eu tô cansado de tanta gente rezano. Eu faço tudo que ocês pede, eu curo duença sem cura, faço gente burra passá em concurso, faço tudo que ocês pedem, mas num acaba nunca! Eu já ajudei a Maria da Graça, o quê mais qui ocê quer?!
– Como você sabe o nome da minha filha? – arregalei os olhos. Vi a figura distante do padre lá do outro lado, na grade da cripta, aguardando o meu retorno. Baixei a voz para perguntar ao menino – Foi… o padre que te contou?
– Ocê não tá iscutando – seu tom agora era de impaciência. – É só eu que iscuto ocês tudo. O padre nem sabe quem qui ocê é, quanto mais a Maria da Graça. Eu sei o nome da sua filha purque ocê me pediu pra curá ela da febre que já fazia oito dias.
Não, isso o padre realmente não tinha como saber. Ou tinha? Talvez o médico que examinara a Maria da Graça tivesse comentado com alguém, que comentou com o padre, que comentou com… o menino que ele mantinha prisioneiro na cripta da igreja e aparentemente lia pensamentos? Que diabo estava acontecendo?
– O padre… abusa de você? – falei o mais baixo que pude. – Ele bate em você?
– Não, moço, ele num faz essas coisas. O pobrema é as vozes. O tempo todo, as vozes fica me torturano. Deus, me traiz isso. Deus, me faiz aquilo. O tempo intêro, sem sussego, vozes, vozes, vozes – e ele puxou pra baixo as alças da panela, tentando enterrá-la ainda mais na cabeça.
– É por isso que você usa isso? – deduzi. – Por causa das vozes?
Ele pôs a panela de novo no chão e me olhou com a cara mais triste do mundo.
– Era, moço. Mas num funciona mais. Antes funcionava, eu cumeçava a iscutá as vozes, botava isso na cabeça e elas parava. Diminuía um pouco. Agora é muitas, o tempo todo… num adianta mais.
– Onde está o seu pai?
Ele revirou os olhos, como se dissesse: “melhor nem me perguntar.”
– E a sua mãe?
– A mãe… – e ele pausou por alguns segundos. Depois encarou o infinito, como se entrasse no túnel das memórias e falasse a uma plateia invisível. – A mãe rezava toda hora que eu passava jogano bola dên di casa, correno com o cachorro, essas coisa. Sinhô, me ajuda a quietá esse menino levado. Jesuis, me dá paciênça pra güentá essa peste. Deus todo-poderoso, dá um jeito nesse minino que só me dá dor de cabeça. Aí um dia eu acordei com a voz dela bem na minha cabeça. Sinhô, dá conta desse minino, faz ele ficá obidiente. Muito alto, muito forte, aqui, ó – ele apontou para as têmporas. – E depois da mãe, veio a vó. Sinhô, me dá saúde. O meu pai. Jesuis, me ajuda a ganhá na loteria isportiva. A tia. A vizinha de trás. Os vizinho da frente. E eu obidicia tudo, moço. Eu juro. A vó tá com saúde, sarô das ziguizira todas. O pai ganhô na loteria, um dinherão, e foi-se imbora largano nóis tudo pra trás. Mas num adianta eu obedecê, porque o povo continua rezano. Num tem fim essa tortura. A mãe me trouxe aqui na igreja, tava muito preocupada. Pidiu ajuda pro padre e ele me botô aqui. Até hoje eu ouço a mãe todo dia, ela falando: Sinhô, ajuda esse minino a curá dessa loucura. Mas essa reza eu num posso obedecê, porque eu num sô maluco. Eu num sô maluco, moço.
Fiquei olhando o menino por um tempo, absorvendo suas palavras, a cabeça girando a mil e penando pra decidir o que fazer.
– Há quanto tempo você está aqui? – perguntei. Ele desviou o olhar sem responder. Sua camisa, que eu não sabia se era amarela de fábrica ou por conta da imundície, eram curtas demais para o seu corpo. Devia estar ali há pelo menos um ano, talvez dois, sem trocar a vestimenta. Mas o choque mesmo foi notar que, em seu pé direito, havia uma tornozeleira de ferro, ligada a uma corrente, que por sua vez estava pregada à parede. Eu já tinha lido histórias de crianças abusadas na igreja, mas aquilo… que raio de padre fazia aquilo?
Quando vi, minhas mãos já tinham escolhido o que fazer e foram direto no tornozelo do menino. Cochichei, com a convicção de quem não sabia o que estava falando:
– Eu vou tirar você daqui.
Seu olhar continuou desesperançoso e ele só disse alguma coisa depois que minhas tentativas de remover a tornozeleira se provaram patéticas:
– Num adianta, moço.
E de fato não adiantava. Uma luz forte surgiu do outro lado da cripta, junto com o som da grade se abrindo e fechando logo em seguida. O padre estava vindo.
Fiquei onde estava – o que mais havia de fazer? Ele caminhava a passos rápidos e cobriu o extenso corredor em vinte segundos, a luz forte – uma lanterna de verdade, não de celular – me cegando como antes eu cegara o menino.
– Levanta – disse o padre, apontando a luz para o teto e iluminando a cripta de forma mais difusa. Não parecia particularmente bravo: sua expressão era mais de cansado do que qualquer outra coisa. – Me pergunte o que você quer me perguntar.
Fiquei de pé, mas não sabia como formular as milhares de indagações que se embolavam em minha mente. Me atravanquei num “como, quando, por quê?” desconexo que só deixou o homem mais irritado.
– Se o diabo está encarnado em uma criança – ele me cortou –, é dever da Igreja não só proteger essa criança, mas o resto do mundo.
Fiquei sem reação. O diabo? Pois era justamente o contrário que eu tinha acabado de testemunhar.
– Não, padre. Não é o diabo. É Deus quem…
– Eu não vou admitir sacrilégios sob o teto da casa de Deus – e ele voltou a me cegar com a lanterna. – Você não precisa ter estudado teologia a vida inteira para entender que está diante de uma obra do diabo. Você acha que Deus faria… isso?
Ele iluminou o menino, que estava virado para o canto da cripta com a panela afundada na cabeça, como tivesse sido posto de castigo.
– O menino ouve as nossas rezas – falei, agora sem gaguejar, pois sabia que dizia a mais pura verdade. – Ele ouviu a minha. E não só isso, padre. Ele atendeu a minha prece.
E aí presenciei algo que, na hora, me pareceu mais sinistro do que as vozes na cabeça do menino ou a corrente de ferro em seu pé: o padre irrompendo numa gargalhada que ecoou pela cripta, quiçá por toda a igreja.
– Quem realiza milagres é Deus, meu filho – disse, ao se recompor. – Se Ele ouviu as suas preces, abençoado seja você, e fico muito feliz. Agora, se ele também ouviu… – e apontou de novo a lanterna para o menino –, é uma prova de que o diabo também anda aprontando das suas. E deixando essa pobre alma no estado em que está.
– Mas por que tratar o menino assim, padre? Desse jeito… desumano? – seu olhar me fez arrepender imediatamente da palavra que escolhi. – Por que não levar ele pra algum lugar, alguma instituição?
– Uma instituição melhor do que a Igreja?
– Eu quis dizer… um médico. Um hospital. Talvez… psiquiátrico.
– Eu já trouxe um médico aqui, meu filho. Você acha que eu sou o quê? Foi a primeira coisa que eu fiz. Mandei trazer o melhor psiquiatra que o dinheiro da igreja pôde pagar. Dinheiro que ia para a caridade, para ajudar os necessitados. Mas naquele momento, a minha escolha foi ajudar o menino. E aí o médico veio da capital, um negro alto, de cabelos brancos, muito experiente, estudado, sereno. Veio e conversou com o menino durante horas.
– E o que ele falou? Qual foi o diagnóstico?
O padre riu novamente.
– Ah, você sabe como são os médicos. Disse que ficou muito impressionado com as coisas que o menino contou. Que a maioria de nós usa apenas dez por cento do potencial do cérebro, mas que esse menino usava trinta, quarenta por cento, talvez até mais, uma coisa fora do comum. Usou umas palavras complicadas, metapsíquica, hipersensitividade, e explicou que as vozes vinham disso. Quando perguntei qual era a cura para o sofrimento do garoto, ele disse que não sabia. Não sabia! – o padre abriu os braços. – Tanta ciência, tanto conhecimento, e o maior especialista do assunto não entendia o que era óbvio. É por isso que esse menino está muito melhor aqui. Só a casa de Deus para curar uma obra que é nitidamente do diabo.
– Mas ele não está sendo curado. Olha pra ele, padre.
– Ele está sendo tratado com toda a dedicação que eu posso dar. Ele tem abrigo e distração – e o padre iluminou o colchonete encardido num canto, onde havia também uns carrinhos de lata e um cachorro de pelúcia sem um dos olhos –, e eu lhe trago refeições três vezes por dia e levo embora suas necessidades. É a vida mais digna que eu posso lhe dar, considerando que é um corpo habitado pelo demônio.
– Mas, padre, você… o senhor sabe que não é verdade. Esse menino está ouvindo as preces das pessoas e atend…
– Não confunda as preces que só Deus atende com as peças que só o diabo prega. E outra coisa, meu filho: você acha que é o primeiro a descobrir este garoto aqui? A se compadecer de sua situação, a querer que ele tenha uma vida normal, apesar de tudo o que eu acabei de lhe contar? Se um mundo em que o diabo anda por aí, fora de controle, é o lugar onde você quer viver – ele colocou a mão no bolso da batina e me entregou uma chave –, vá em frente.
O padre virou as costas e caminhou rumo à saída, me deixando ali ao lado do menino, que continuava absorto de cabeça baixa. Eu tinha na mão a chave de sua liberdade – mas de repente não sabia o que fazer. A imagem de Maria da Graça sofrendo na cama me veio clara. E se ela adoecesse de novo? E todas as pessoas que ele poderia continuar ajudando, todo o bem que ele ainda poderia fazer? Eu podia até ouvir Lurdinha cochichando em meu ouvido: “Ele teria me salvado, amor”.
Não, Lurdinha. Eu não podia simplesmente deixá-lo ali, como um gênio da lâmpada acorrentado à disposição dos desejos alheios. Não era pra isso – agora eu tinha certeza – que Deus tinha me levado até ali.
Me ajoelhei perto do menino e estava para abrir a fechadura da tornozeleira quando ele sussurrou:
– Moço…
– Não se preocupa. Eu vou tirar você daqui. Vou te levar pra casa.
– Moço, o médico… – sua voz agora estava trêmula.
– O que é que tem o médico?
– O médico me falô que foi ele, moço. Foi ele que me passô essa disgraça.
Senti um arrepio nos pelos dos braços.
– O médico? Como assim? O que ele falou?
– Falô que não era médico coisa ninhuma, moço. Nem gente, gente mesmo, ele era. Falô que era muito poderoso, que tava saíno de férias e que inquanto isso tinha me passado um pouco do poder dele. Porque as pessoa tava pricisando aprendê uma lição.
Uma sensação estranha me embrulhava o estômago, um refluxo, uma queimação.
– E ele tamém me contô outra coisa, moço. Ele me falô o nome dele.
Vieram-me à mente as minhas aulas de catecismo há mais de vinte anos e um trecho do Velho Testamento.
– O nome dele… – eu sentia uma vertigem estranha enquanto falava – era Javé?
E quando ele respondeu, não foi na sua voz aguda de criança, mas no timbre rouco e cavernoso de um homem velho.
– Não, meu filho – ele exalou um hálito pútrido enquanto sorria com o sorriso de outra pessoa. – O nome dele era Mefisto.
Já faz bastante tempo desde aquela tarde na cripta da Igreja Matriz. Se nunca compartilhei com ninguém o que se passou ali – nem sequer com Maria da Graça, quando ela ficou mais crescida –, não foi por receio de não acreditarem em mim, de me chamarem de louco como chamaram o menino. Foi por culpa. Por vergonha. Tantos anos depois, ainda não passa uma semana sem que me venha à memória o momento em que, chocado com a revelação que acabara de ouvir, me vi guardando a chave no bolso e me levantando sem olhar para trás. E como, ao dar o primeiro passo em direção ao portão da cripta, ainda com o refluxo me queimando o esôfago, pensei: Deus me perdoe…, ouvindo como resposta aquela voz esganiçada, gritando com toda a força que restava em seus pulmões:
– TÁ PERDOADO, AGORA PARA DE GRITAR COMIGO E VAI EMBORA DAQUI!! – e fui embora ao som do mesmo barulho que antes interrompera minhas preces, e que eu agora sabia ser a panela sendo batida violentamente contra o chão pelos bracinhos finos do menino: PÁ, PÁ, PÁ, PÁ!
Santa Clara dos Perdões é hoje conhecida nacionalmente por seus milagres. Romeiros do Brasil inteiro enchem caravanas e vêm lotar a Igreja Matriz todo final de semana, implorando que o Deus caridoso que abençoa aquela cidadezinha as ajude a realizar sonhos improváveis e a remendar dores irremediáveis do corpo e da alma. Eu nunca mais pisei na igreja – nunca mais sequer rezei –, mas a julgar pelas histórias que os visitantes deslumbrados contam nos programas de TV, presumo que o menino, hoje não mais uma criança, continua lá. Nas noites em claro, uma imagem quase palpável me alimenta a insônia: um rapaz de olhos fundos e cabelos batendo na cintura, que nem se incomoda mais em gritar ou espancar sua surrada panela no chão, pois sabe que as hordas de fiéis rezando alto e fervorosamente sobre sua cabeça não iriam escutar – e, mesmo se escutassem, não moveriam um dedo para lhe trazer um pouco de paz. Enquanto isso, ficamos esperando, eu e o menino da cripta, que o diabo um dia resolva voltar das férias.