Texto original para o portal Audiograma
O sobrenome Medina é tão forte que é conhecido até mesmo pelos principais impulsionadores do chamado mercado dos sonhos: gente que trabalha muito, ganha pouco e teve o azar de sonhar em assistir ao show da sua banda/artista favorito. Claro que existem outros atores envolvidos para ajudar no sucesso desse mercado, como herdeiros, influenciadores digitais e gente que simplesmente não tem o que fazer com tanto dinheiro.
Para quem vive além dos sonhos e do amor, o sobrenome Medina também significa qualidade internacional em eventos em solo brasileiro. Com uma história de sucesso iniciada lá em 1985 com a primeira edição do Rock in Rio, é de se esperar que essa assinatura seja sinônimo de qualidade e confiança.
Foi assim até o The Town. Ou Fyre Festival com a cara de Sampa.
Mesmo após o cancelamento do Queens of the Stone Age, tentei me manter animado com o evento. Afinal, existiam vários fatores positivos para me animar: primeiro grande evento pós-pandemia da COVID-19, reencontro com amigos, oportunidade de levar minha esposa para seu primeiro grande festival, assistir ao Foo Fighters pela sexta vez, e, não menos importante, prestigiar a primeira edição da “versão paulista” do Rock in Rio.
O primeiro final de semana recebeu uma avalanche de críticas negativas. Imaginei que a chuva tenha sido a principal culpada porque me recusava a acreditar 100% nos relatos, mas senti na pele a realidade do evento. E foi frustrante, na maioria dos aspectos.
Filas para banheiros e bares são normais em grandes eventos. Especialmente quando as pessoas preferem a comodidade de ir nos lugares mais próximos ao invés de andar para encontrar bares/banheiros vazios (que não são lendas urbanas como a meritocracia: tinham bares e banheiros mais tranquilos para quem se aventurasse).
Porém, com quase quarenta anos de experiência, era de se esperar que os produtores entendessem melhor seu público. Não adianta dispensar banheiro químico se não vai dar conta da demanda como ela acontece fora do papel. Lembro do banheiro no Planeta Terra, de 2008, que era praticamente um galpão inteiro só para isso. Será mesmo tão difícil/doloroso no bolso cortar ativações publicitárias para incluir mais banheiros?
Ainda falando sobre o comportamento do público do Rock in Rio, que gosta muito de sentar com a bundinha dourada no meio do caminho das pessoas, me parece ainda mais zoado pensar que alguém achou mesmo OK colocar um palco tão próximo do outro sem considerar o pouco espaço para ir e vir.
Aqui nas páginas laranjas do Audiograma não cola o papo de “tinha espaço”. Aqui tem gente velha de guerra que frequenta os principais eventos musicais do país e exterior desde 2007. Quem insistir que “tinha espaço” tá com alguma placa de ativação do TikTok atolada nos buracos dos olhos. O que já seria um problema imenso em um festival de gente livre da atração anal pela grama, uma bela simbiose da natureza, se torna muito pior quando analisamos o comportamento tradicional dos envolvidos.
O The Town nasceu com o DNA do que há de pior no Rock in Rio: pessoas mais interessadas na curtição de participar do evento mais falado da semana do que apreciar a música. Pessoas mais preocupadas em tirar selfies do que ouvir as músicas. Tá errado? Não sei. Eu não acho legal. Mas minha relação com arte é muito diferente da maioria das pessoas que usam música apenas como distração. Faço parte daquele grupo cada vez menor de pessoas que escutam um disco ao invés de uma playlist no Spotify. Eu não teria a falta de noção de decidir ficar sentado no meio do caminho das pessoas. Muito menos ficaria com meu telefone filmando um show inteiro. Até porque meu celular está arregaçado demais para isso.
A partir do momento em que essa multidão educada e com dor nas pernas/lombar decidiu ocupar os espaços de trânsito, ficou IMPOSSÍVEL andar sem correr sérios riscos de entrar em uma confusão. Sem falar nos relatos de gente que foi furtada. Mas tudo bem. As ativações de iFood, Globoplay, TikTok e Colgate estavam lá firmes e forte para dar aquele ar de shopping para o show. Só faltou uma ativação da 123 Milhas para tornar o evento ainda melhor.
Com tantos elogios e marcas, você deve estar se perguntando se eu estava mesmo em um evento musical. Pois acredita que era essa a proposta do The Town? Ou do Rock in Rio lá em 1985 e até 2011, pelo menos? É que tanta publicidade me deixou confuso mesmo.
Eu juro que não queria ser um pau no cu que só reclama. Eu juro que não queria ser esse cara. Mas alguém precisa ser, não é mesmo? Assim como um crítico de cinema precisa ver A Freira 2 para proteger o bolso e o tempo dos seus leitores, alguém tem que ter a ousadia de dar a real em tempos em que serviços de profissionais especialistas são preteridos em relação aos profissionais que viralizam no TikTok. O jornalismo virando um serviço de assessoria de imprensa ou troca de favores é algo muito questionável. E sem volta, aparentemente. Então, vou ter que ser o cara que só reclama e dizer que quem viu pela TV provavelmente teve uma experiência melhor até mesmo na questão sonora.
O palco secundário, The One, não apenas oferecia melhor visão para o público, como também tinha um som mais cristalino. Não estava alto/ensurdecedor, mas estava bom o suficiente para fazer valer a pena. Vi/ouvi um pouco do Terno Rei e depois o caos organizado (em homenagem ao caos desorganizado do próprio evento) do Wet Leg. Foram os pontos altos, quando se pensa em ouvir a música.
Em relação ao palco principal, o Skyline, eu não sei nem por onde começar. Aproveitei a apresentação da Pitty para tentar encontrar lugares estratégicos para assistir aos shows sem querer morrer ou matar. Quando mais para frente eu ia, a impressão de que o som piorava. Entre a primeira e segunda torre com caixas de som estava ruim. Depois descobriria que lá atrás da última torre seria pior ainda, mas deixa para falar disso depois.
Considerei descer para o show do Detonautas no The One, mas a ideia do caos de ir e voltar me desanimou. Além disso, já tive minha cota de apresentações ao vivo do Tico. Aceito minha relação de amor/ódio/admiração. O que me incomoda mesmo é sempre constatar que após a Pitty, Detonautas, NX Zero e Fresno, nosso rock não teve outro grande nome. Os tempos mudaram e grandes máquinas de influência, como a MTV, deixaram de existir. Nossos grandes artistas contemporâneos são resultados de algoritmos. Não é que isso seja um problema ou ruim, mas é tanta pulverização que fica impossível comparar com o que era antes. Além disso, pensando na sonoridade dos artistas citados, não existe de fato um nome roqueiro para pegar seu espaço. Os principais nomes da música moderna brasileira fazem pop. É de qualidade, mas não é rock. Não lembro quem falou uma vez que o rock (mundial) foi substituído pelo rap. Isso faz sentido se a gente pensar que Djonga e Emicida são nomes fortes fazendo os protestos políticos e sociais necessários.
Quando o Garbage entrou em cena, pensei que o som também daria o ar de sua graça. Que engano. Ainda estou sem saber se a diva Shirley Manson estava mesmo em Nárnia e a banda em Hogwarts, ou se o problema era mesmo do som naquele ponto específico que fiquei. Talvez seja a idade também. É bom ver o Garbage ao vivo, mas não pareciam afi(n)ados como no show do Circo Voador anos atrás. Talvez Manson compartilhasse da indignação de tocar antes do YYY.
O Barão Vermelho (sem Frejat) entrou em cena para um show que não apenas reforça o que falei sobre a falta de renovação do rock nacional, como também para prestar uma auto homenagem ao legado do Rock in Rio. Se não for por isso, fica difícil entender porque eles estavam lá. E olha, o show do Barão Vermelho (com Frejat) está entre os melhores que já vi na vida. Amo a história do Barão Vermelho e suas canções, mas parecia fora de sintonia. Ou repetitivo demais.
Com a difícil missão de substituir o Queens of the Stone Age, o Yeah Yeah Yeahs fez o melhor show do The Town (pelo menos no dia 9 de setembro). O som continuou sem ajudar, mas Karen O e suas peculiaridades fugiram do padrão óbvio e seguro dos shows anteriores (e do que viria para encerrar a noite). Sempre acredito que a melhor forma de conhecer ou se apaixonar por uma banda é depois de vê-los quebrando tudo ao vivo. Essa ideia continua fazendo muito sentido porque YYY virou um motivo de alegria ao pensar no The Town.
O tamanho dessa crônica pode ser encarada como uma tentativa de piada com o próprio show do Foo Fighters. Poderia sim ter cortado boa parte das reclamações e detalhes, assim como Dave Grohl deveria parar de usar o mesmo esqueleto de show desde 2012. Seja com as interações cuidadosamente planejadas para se repetirem em qualquer lugar do mundo (isso inclui até piadas, tá?) até os intermináveis solos e jams, Grohl poderia otimizar o tempo das pessoas (e o próprio) incluindo mais músicas, quem sabe?
Em turnê do (surpreendentemente) excelente But here we are, a banda de Grohl retorna ao país para curar uma ferida. Na véspera do show do Lollapalooza em 2022, o baterista Taylor Hawkins desencarnou e deixou a banda em um doloroso período de hiato. O aspecto emocional deveria falar mais alto para um fã apaixonado, mas é foda ignorar que velhas manias permanecem lá. Depois de cinco shows isso cansa. Não fosse o desejo de ouvir “Aurora” ao vivo (em 2015 fiquei quatro shows berrando “Aurora” até ficar sem voz e recebendo de volta apenas as mesmas 20 músicas em toda a tour, praticamente), não sei se teria me aventurado por SP.
Mas aqui estou eu. Mais uma vez em um show do Foo. Pela primeira vez ouvindo minha música favorita da banda, que também era a do Taylor, por uma (triste) coincidência. Por tudo que ela significa, posso dizer que salvou o dia de virar uma verdadeira tragédia, como canta a Pitty. Uma pena que esse amor todo não foi o bastante para evitar a sensação de decepção com mais um show mais do mesmo do Foo Fighters.
(Ainda cabe reclamação? Se sim, você se surpreenderia se eu dissesse que quem ficou lá na casa do caralho à esquerda da casa do Bolsonaro não conseguia ouvir nada? A caixa da bateria de Josh Freese estava com som de caixote de supermercado. O baixo parecia mais real no disco do White Stripes. E os gritos do Grohl pareciam estar sufocados. Para completar, o telão do palco The One não mostrou o show. Isso obrigou as pessoas a tentarem ir mais para frente e se contentarem com um som muito meia bomba para o tamanho de um evento desses. Para efeitos de comparação, eu vi o Metallica no Rock in Rio de 2015 de um lugar muito afastado. Apesar das falhas técnicas, não estava baixo ou ruim.)
E isso é tudo que tenho a dizer sobre o Fyre Festival de São Paulo. Uma pena que minha esposa precisou sair de Belo Horizonte para viver um perrengue chique desse e sem poder voltar para casa com a certeza que viu um bom festival. Para quem estava lá curtindo um evento grande pela primeira vez, infelizmente, acho que só viram a pior parte de um evento musical. Quero dar meu voto de confiança de que os Medina vão limpar essa cagada no maiô para 2025. De preferência, com o Bruce Springsteen. E credenciando a imprensa que fala de música ao invés de fazer dancinha no TikTok.