Em 2014, eu realizei um sonho: consegui credencial para cobrir o Festival de Cannes, o maior de cinema do mundo.
Por 11 dias, eu acordava me sentindo incrivelmente sortuda. Mas lembro perfeitamente da sensação de estar dentro de uma sessão específica em Cannes e me sentir extremamente irritada.
Nada tinha a ver com a qualidade do filme (eu comecei a sentir antes de iniciar a projeção). Era porque estava um dia lindo, na riviera francesa e naquele momento eu queria passear, ver o mar e sentir o vento no rosto tomando sorvete. Não estar numa sala escura de cinema, o que normalmente amo. A sessão acabou e eu não entendi quase nada do filme, não consegui concentrar. Mais tarde, porém, voltou a sensação de que eu era a cinéfila mais sortuda do mundo.
Eu lembro bem desse episódio porque ele me fez aprender algo valioso: é difícil amar algo o tempo todo. E mesmo que você tenha a sorte de fazer o que ama, fazer a mesma coisa todos os dias sempre vai fazer com que algumas vezes aquilo seja um saco!
Embora as coisas que eu vá dizer me causem vergonha, eu decidi escrever esse texto porque acredito que as redes sociais potencializaram a mania que a gente tem de comparar nossa vida com a dos outros, fazendo com que a gente se sinta sempre inadequado. E algo que tenho aprendido para ser mais mais feliz é: cada um tem o seu tempo e maneira de experienciar a vida. Vale a pena se esforçar para não moldar a sua numa forma que não lhe cabe.
Talvez você não saiba, mas existe uma espécie de competição velada no meio cinéfilo sobre a quantidade de filmes que cada um vê. Os cinéfilos usam uma rede social chamada Letterboxd para listar o que assistem, dar nota e deixar lá pra todo mundo ver quais foram os 300, 400, 500 filmes (eu já vi gente passar de 800) que eles assistiram no ano. Quando vai chegando dezembro e a lista é menor que 300, a pessoa já começa a achar que deve explicações. Vi raríssimas vezes alguém admitir menos de 200.
Sempre me perguntam porque não tenho conta no Letterboxd. A real resposta é: eu não quero expor tudo que vejo. Vamos admitir que existem filmes que a crítica ama, a gente não entende nada e tem que ir estudar pra entender porque a crítica amou. E aí? Você deixa esse filme sem a sua nota pessoal enquanto não compreende esse amor dos outros?
Mas outro motivo é: eu sempre tive vergonha. Porque eu nunca vi mais do que 200 filmes em um ano! Sempre quis, nunca consegui. Mas, honestamente, hoje isso não é mais minha prioridade.
Eu vi 73 longas em 2018. Queria ter visto MUITO mais, mas não preciso dizer que 2018 foi um ano difícil, porque acho que foi para todo mundo, né? Para mim foi terrível e um dos que menos vi filmes.
Eu comecei a listar tudo que eu assisto em 2007 (no Imdb, que me permite manter tudo privado) e, desde então, o ano “mais produtivo” foi 2012, quando vi 164 filmes. E ainda assim terminei ele frustrada. Passei mais de 10 anos sentindo uma enorme frustração aos finais de dezembro por nunca ter visto a quantidade de filmes que minha rodinha cinéfila via. E me sentia uma fraude, sentia que estava “enganando” pessoas que confiavam na minha opinião.
Essa é a primeira vez que tenho coragem de admitir o que são, para um cinéfilo, vergonhosos números. Mas, de uns meses para cá, tento me convencer que não tenho motivo para ter a consciência pesada e, talvez, eu convença você também.
Desde 2007, eu trabalho e/ou estudo no mínimo 50h semanais (concilio empregos, estágios, estudos e freelas desde os 20 anos). Tenho minha casa e família pra dar atenção. Para assistir mais de 300 filmes por ano, eu teria que ver por obrigação e qual o sentido de transformar uma paixão que não me dá um centavo em obrigação?
Se um dia a crítica pagasse minhas contas eu assistiria, no mínimo, um por dia. Tratando como qualquer trabalho: sabendo que tem dias que a gente tá super afim e outros que a gente leva com a barriga só pelo dinheiro. Mas não é meu ganha-pão e, honestamente, não acho que será um dia.
Vivem sugerindo que eu faça vaquinhas online pra manter meu canal no YouTube (o Fora do Padron), e acho fofo o interesse das pessoas, mas não vai rolar. Porque aí eu passaria a me sentir na obrigação de ver mais filmes e produzir mais conteúdo, sacrificando meu ritmo por um pouco de dinheiro. Por enquanto cinema é só hobbie e o meu favorito. Eu amo cinema! Mas não é a única coisa que amo gastar meu tempo.
Eu amo comer e descobrir restaurantes. Passear ao ar livre. Não abro mão de longas caminhadas 2 ou 3 vezes por semana. Gosto de ler sobre assuntos muito diversos e escrever sobre o que me toca. Gosto de compartilhar minha vida nas redes sociais. De ficar ouvindo música deitada na rede sem fazer nada. De ficar dançando enquanto meu marido cozinha. De viajar e jogar joguinhos idiotas. De conversar com os amigos, de política a futilidades. De tomar banhos longos e dormir até tarde nos fins de semana. Gosto do meu trabalho como social media. E acho que fazer tudo isso me torna uma pessoa que sabe apreciar e analisar melhor os filmes.
Sei que tem pessoas que conseguem conciliar suas centenas de longas assistidos com trabalho e vida social, mantendo uma rotina saudável. Se é o que elas querem, fico muito feliz que consigam, porque é um baita privilégio. E sei que, provavelmente, muitas delas fazem críticas muito melhores que as minhas. Afinal, elas têm uma bagagem de estudos maior.
Mas tudo bem, eu não estou tentando competir. E faz tempo que perdi a vergonha de admitir quando não entendo bem um filme por não ter conhecimento suficiente. Deixo de produzir conteúdo sobre ele e vou estudar. Mas me recuso a sair reproduzindo a leitura dos outros como se fosse a minha. Posso ser lenta, mas não sou uma fraude.
E que fique claro que a intenção desse texto de forma alguma é criticar quem assiste 500 filmes por ano! O que eu discordo é aplicar essa lógica produtivista que rege nossa vida à arte, como se fosse uma regra que nos permite entrar ou não em um clubinho particular.
Assistir filmes é essencial para aprender sobre cinema de verdade. É a coisa mais importante! Mas não acho que basta. Você pode assistir 3 filmes por dia, mas se você não tem a sensibilidade de captar o que há de mais humano neles, seu material crítico provavelmente não vai me interessar.
Eu acredito que é importante deixar a arte mexer com algo dentro da gente. E, para isso, é preciso estar disposto à entrega. O que nem sempre estou.
Não faço maratonas de filmes. Em festivais (quando normalmente temos que ver no mínimo 3 por dia), tento me isolar entre um e outro pra pensar, pesquisar e anotar tudo o que vem em mente. Mas, ainda assim, acho que as análises durante um festival são prejudicadas em relação a um filme que eu tenho dias para digerir só ele. Não me obrigo a começar a ver um longa às 22h de um dia de semana, cansada de uma longa jornada de trabalho. Eu não quero perder tempo da minha vida assistindo um monte de coisa sem deixar elas me tocarem direito só pra ter um número alto para contar para minha timeline cinéfila.
Ainda tenho muitos movimentos cinematográficos e diretores desconhecidos para explorar. E como sei que não consigo um número alto, posso concentrar no que realmente acho que vai me acrescentar algo. Na moral, eu tenho tanta coisa que eu morro de vontade de ver inédita ainda, então, para que eu vou assistir Velozes e Furiosos 8?
Por que eu me considero cinéfila mesmo vendo poucos filmes? Porque eu amo entender o cinema! Não basta assistir, eu sempre quero saber tudo sobre a produção, quem são os envolvidos e o que ele desperta nas pessoas. Amo pensar sobre o que aquele filme diz sobre a sociedade em que está inserido. E, para isso, acho essencial que eu viva muitas experiências na vida real.
Faço anotações, pesquiso, passo um longo tempo refletindo sobre possíveis interpretações e, no fim, gosto de compartilhá-las com o público. E, como faço isso baseada no que estudei sobre cinema e no meu senso crítico, chamo de crítica de cinema.
Mas se você achar que não mereço os títulos de cinéfila ou crítica de cinema, tudo bem. Não sinto mais a necessidade de ter uma credencial validada pelo público. Se você acha que isso invalida os conteúdos que produzo sobre cinema e quer deixar de me acompanhar… É uma pena, mas é sua escolha e espero que você volte um dia.
Acho que algo em torno de 200 seria um número saudável para conciliar com tudo o que gosto e preciso fazer, sem se tornar uma obrigação chata. Mas existem redes sociais, ansiedade e outros e mecanismos de autossabotagem que fazem com que eu não atinja o que gostaria, infelizmente.
Não quero dizer para você não se esforçar para cumprir as suas metas. Eu me esforço e ainda fico chateada que nunca consigo assistir a quantidade de filmes que gostaria. Mas não deixe essa frustração te definir!
Pequenos e grandes fracassos fazem parte da vida e eu não me permito mais me culpar por isso. Eu fiz o que consegui e aproveitei de verdade minha pequena lista de filmes. Pelo menos dei tempo suficiente para que a maioria deles pudesse transformar algo em mim.
Talvez todo esse papo de “quantos filmes” não faça o menor sentido para você. Mas tenho certeza que toda virada de ano você se culpa por não ter feito o suficiente: não ler livros, transar, frequentar a academia, estudar, viajar, produzir… Porque nas suas timelines sempre vão existir pessoas que tornam os seus números vergonhosos.
Well, fuck them.
Faça um bom proveito dos seus pequenos números. É o que você deixa tocar sua alma que te torna único, não a medalha que você sacode pro mundo.