O #ButecoInRio prossegue desbravando os territórios culturais cariocas. No terceiro dia de cobertura, presenciamos um debate contextual e, em seguida, conhecemos mais uma sede do Festival – o charmoso Estação NET Ipanema. Vamos aos protagonistas da experiência:
05) O Muro ★★★½
(idem, Brasil, 2017. De Lula Buarque)
Local: Estação NET Rio, em Botafogo
Uma das ideias articuladas pelo escritor Byung-Chul Han no necessário “Sociedade do Cansaço” é a de que vivemos num contexto de “inimigos internos”, no qual as barreiras, antes construídas clara e exclusivamente para a inibição de ameaças exteriores, agora são tomadas pela indefinição. Sem maiores aprofundamentos ao raciocínio do sul-coreano, o muro de Brasília, responsável por intitular o documentário O Muro, de Lula Buarque, carrega consigo na prática a atualidade deste conceito.
O longa-metragem examina todo o contexto de polarização política que marca o Brasil nos últimos tempos e, inegavelmente, possui o impeachment da presidenta eleita Dilma Rousseff, no ano passado, como epicentro. Não há uma busca, entretanto, por realizar uma análise política da questão; Buarque procura assimilar os rumos da intolerância que foi semeada e disseminada neste período e, assim, chegamos à questão do muro: o que, afinal, buscamos separar de nós? Se antes éramos capazes de separar cristalinamente os elementos sociais dos quais a civilização procuraria manter distância – fosse um possível invasor de guerra ou coisa que o valha -, a eclosão da crise política colocou, em territórios antagônicos, aqueles que poderiam ser pais e filhos, irmãos e irmãs, maridos e esposas. O duelo ideológico pregou o extremo e, afinal, foi consumido por ele.
Atendo-se às questões internas no primeiro ato, O Muro quase esteve próximo de perder-se enquanto narrativa ao insistir na repetição; as imagens estáticas ao som da trilha sonora metalizada, de claros propósitos experimentais, beiram a redundância quando ocupam tempo demais sem alterações notáveis. Acertadamente, todavia, Buarque decide manter o exercício sem preservar a repetição, e passa a observar a problemática sob outra perspectiva: a global. Passando pelo que elegeu Donald Trump presidente dos Estados Unidos até a percepção de territórios onde há a irrestrita negação de determinadas etnias, nota-se um perigosíssimo contexto de “pandemia da intolerância”, no qual, sem inimigos claros e com convenções sociais dissolvidas, nos aproximamos de grupos que são “contra aquilo que também somos contra” e, aos poucos, formamos agressivas e nocivas castas sociais.
E é complexo, talvez impossível, compreender as causas que nos levaram a este ponto de colapso. O Muro acerta, mais uma vez, ao não adotar a arrogância intelectual de acreditar fazê-lo: o documentário prefere, por sua vez, dar espaço a múltiplas vozes que, ao final, conforme sua propositalmente incômoda trilha sonora sugere, ocupam um cenário tão angustiante e indefinido quanto aquele que nós, mortais, ocupamos. Resta-nos questionar e tolerar.
“É preciso construir um muro, sim: entre a extrema-direita e a civilização.”, frase retirada do último depoimento da obra, à qual eu não poderia deixar de ceder este espaço.
Observação: o encerramento da sessão abrigou um debate com o diretor do longa e a produtora Letícia Monte, mediado pelo crítico de cinema Pablo Villaça, do Cinema em Cena.
06) Vida em Família ★★½
(Vida de Familia, Chile, 2017. De Alicia Scherson e Cristian Jimenez)
Local: Estação NET Ipanema, em Ipanema
Há seres humanos que passam pelas vidas de outros e os envolvem sentimentalmente. Até aí, tudo bem. Refiro-me, no entanto, àqueles que, quando o fazem, semeiam um conjunto de mentiras apenas para mantê-los envolvidos enquanto lhes convém e, enfim, desaparecem da vida destes outros quando os parece mais oportuno. Se você, leitor deste texto, não enquadrar-se exatamente neste perfil, acredite: alguém assim ainda afetará sua vida.
Martín (Jorge Becker) é um sujeito em seus trinta e poucos anos, aparentemente melancólico, descompromissado e absolutamente misterioso; Pachi (Gabriela Arancibia) é uma jovem mãe, verdadeiramente capaz de entregar-se a alguém e, ao mesmo tempo, aparentemente calejada por relações anteriores. A química que os envolve é nítida e nos faz acreditar em cada passo de intensidade daquele impetuoso relacionamento – mas, claro, quem acredita normalmente se frustra.
Vida em Família vale-se muito mais da verdade passada pelo casal principal, em interpretações legítimas – especialmente Becker, que jamais nos permite deixar de desconfiar de seu protagonista – do que das possibilidades oferecidas por seu roteiro, muitas vezes tão monótono quanto um relacionamento batido – justamente o contrário daquele que engrena a narrativa. Encontra originalidade, porém, ao retratar estas tão raramente abordadas figuras. Quem é que tem a coragem – ou o descaramento – de humanizá-las, afinal? Desconfio que o roteirista Alejandro Zambria não tenha sofrido com uma delas, mas seja uma. Só isso justifica.
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