Bem-vindos à primeira obra de ficção colaborativa do Cinema de Buteco! Toda quinta-feira, a partir de hoje, publicaremos um novo capítulo da história de Orson, um cinéfilo bêbado (tinha que ser) que se envolve numa trama insólita e nebulosa, quando tudo o que queria era esquecer sua ex e arranjar uma nova namorada. Leia mais sobre o projeto aqui.
Serão 10 capítulos de 10 autores diferentes, todos membros ou colaboradores do Buteco, começando com nosso ilustre editor-chefe (e também um cinéfilo bêbado), Tullio Dias. Além de dar continuidade à epopeia de Orson, cada autor deverá encaixar uma citação cinematográfica previamente atribuída. A do Tullio foi:
“Eu sou uma ursinha macia”
(Xuxa Meneghel em Amor Estranho Amor)
Começa agora A Maldição das Cinco Caipirinhas!
Capítulo 1 – Ursinha Macia
por Tullio Dias
“EU SOU UMA URSINHA MACIA!”, alguém berrava repetidas vezes num canto do bar tentando chamar a atenção. “Vejam como eu sou uma ursinha macia e gostosa. Me levem pra casa!”, a voz insistia.
Tentei relutar em olhar, pois já imaginava que aquele timbre grave devia realmente pertencer a um indivíduo meio “ursineo”. Gordo, peludo e com mais de 2 metros de altura. Tive vontade de gritar que o DiCaprio provavelmente gostaria de ter um encontro com ele ou que o tempo do Zé Colmeia já havia passado, mas preferi continuar bebendo a minha caipirinha enquanto o sujeito seguia gritando cada vez mais alto.
Dos milhares de bares abertos na cidade, ela teve que escolher justamente o que tinha um urso carente (e macio) clamando por atenção. Essa história de encontro com uma menina do Tinder já estava me parecendo uma tremenda cagada. Ficar em casa fazendo maratona do Kubrick ou até do Steven Spielberg teria sido mais proveitoso. Defendo que E.T. – O Extraterrestre fica até razoável se você beber um gole de tequila a cada vez que um adulto aparecer.
Meus amigos falaram que eu tenho um problema com bebidas. Bem, acho que a primeira coisa que penso nessas horas é que, se dos meus poucos amigos, eu não tenho respeito por menos da metade e o restante mora em outro estado, é aceitável dizer que não tenho amigos. Ou quase nenhum.
Talvez as pessoas tenham razão em dizer que o pequeno Orson aqui possui um probleminha com o álcool. Me defendo dizendo que Farrapo Humano é um dos grandes clássicos da história e que Despedida em Las Vegas é poesia digna dos melhores momentos de Baudelaire, e que sou facilmente influenciável.
A grande verdade é que tenho mesmo alguns probleminhas.
Eu sofro de amor.
Sofro do mesmo vazio existencial que preenche a tela nos minutos finais de A Primeira Noite de Um Homem, quando o Ben arrasta a filha da Mrs. Robinson pra fora do próprio casamento e eles fogem num ônibus. Depois que passa a euforia, bate a realidade. E essa realidade é fria. Fria como o amor. Fria como a minha ex-namorada.
A Daniela foi a única pessoa que conseguia entender por que eu evitava pisar nas linhas que contornam os passeios das ruas mesmo sem ter TOC. Ela amava isso. Ela entendia quando eu me recusava a conversar com quem nunca tinha visto De Volta Para o Futuro ou dizia que O Poderoso Chefão 2 não era o melhor da trilogia. A Dani dividia comigo um amor incondicional por Era Uma Vez no Oeste. A Dani nunca interrompia uma sessão de Lawrence da Arábia para fazer pipoca ou ir ao banheiro.
Daniela nunca ficou tentando me beijar no cinema, mesmo quando era um filme ruim do Michael Bay ou com o Will Smith. Ela era perfeita, mas num dia desses decidiu que não achava mais graça quando eu tropeçava na rua ou fazia o caminho mais longo porque queria homenagear o Jack Nicholson em Melhor É Impossível. Achou uma tremenda falta de educação quando eu gritei com o sobrinho dela que não sabia o que era um DeLorean (em minha defesa, aquele moleque já parecia querer chorar bem antes de eu começar a chamá-lo de butthead). Mas a pior parte foi quando tivemos uma briga estúpida por uma besteira qualquer relacionada ao fato dela não achar normal que a principal atividade na cama (depois de dormir) fosse assistir a filmes.
Mas tudo bem. Daniela adora O Fabuloso Destino de Amélie Poulain. Eu não queria mesmo me relacionar com uma pessoa que venera tanto esse lixo superestimado. Estou indo muito bem no processo de superação. 1092 dias se passaram e aqui estava eu, rumo ao meu primeiro encontro no Tinder. Daniela era passado.
O gordo peludo continuava fazendo o convite para acasalamento mais esquisito que já ouvi na minha vida. Talvez eu estivesse um pouco bêbado demais para esse encontro. Talvez devesse cancelar. Não seria a primeira vez, mas essa Claudia tinha algo de especial e não é todo dia que o cardápio do Tinder me combina com uma sósia da Salma Hayek.
O celular escapou do meu bolso e logo me peguei clicando na versão laranja do Gru dormindo e começando a reler a conversa com a Claudia. Me sentia realmente com vontade de ser seu malvado favorito esta noite, afinal fazia mais de três anos desde a última vez em que penetrara uma vagina. Mas a quem eu estava enganando? Ela já estava 16 minutos atrasada. Aposto que não vinha mais. Mesmo se viesse, que chance eu teria de ficar sozinho num quarto de motel com ela? Não saberia nem o que fazer, sinceramente. Tinha que aceitar que talvez o fim do relacionamento com a Dani fosse muito recente e eu ainda precisasse de um tempo de recuperação.
E a Claudia acabou de entrar no bar e fazer a ursinha macia calar a boca.
Quem Vai Ficar Com Mary? nunca fez tanto sentido. O cinema ensina lições valiosas pra gente usar na vida. Eu me sentia armado e prestes a estragar tudo. If I was feeling lucky? Oh, no.
Enquanto ela ainda olhava ao redor do bar inspirado na Cantina de Mos Eisley (em minha defesa, foi ELA quem escolheu o lugar do encontro porque temia que eu fosse um psicopata e arrancasse seus rins) me procurando, comecei a lembrar de como foi que tudo isso começou. Confesso que nos últimos anos tive poucos encontros. Nenhum deles acabou do jeito que eu gostaria. A camisinha que está dentro da minha carteira provavelmente já venceu. O Tinder foi uma opção para tentar quebrar o gelo e conhecer alguém legal, mas é um verdadeiro filme de terror B. Além de ser quase impossível dar combinação com alguém que saiba escrever, é mais complicado ainda manter uma conversa com um bando de menina que nunca ouviu falar em Sergio Leone ou chama Star Wars de “aquele filme com as espadas coloridas”.
Em três anos, a Claudia foi a única pessoa que continuou conversando comigo e ria das coisas que eu falava. Eu achava que ela devia ter problemas com drogas ou se sentia carente por morar sozinha, e por isso me dava atenção. Nunca imaginei que a gente iria se conhecer pessoalmente depois de pouco mais de cinco semanas conversando (eu até respondi mensagem dela uma vez enquanto assistia a uma reprise de A Morte do Demônio). Foi ela quem deu a ideia no começo da semana. Achei estranho, mas pensei que a Claudia podia ser a minha chance de me casar com alguém e topei encontrá-la imediatamente. OK. Não tão imediatamente assim, pois tive que consultar meu psiquiatra. Ele disse que seria bom eu sair e tentar ser menos exigente. Acho que ele quis dizer para eu evitar falar das minhas coleções, manias e ódio pela Amélie Poulain.
A Claudia logo me reconheceu e veio andando até mim. Eu me descrevera como um homem branco, alto, magro, sem barba e que usaria uma camiseta com a estampa do pôster de Casablanca. Na verdade, tenho apenas 1,70m e os meus trinta e três anos estão muito bem representados na barriga saliente que cresce cada vez mais. Mas não menti sobre a barba: ainda que meu rosto não seja liso, os poucos fios que existem no meu queixo e bochecha me enchem de orgulho.
Era a hora da verdade. Ela estava pertinho da minha mesa e o meu encontro estava prestes a começar.
***
Esta história continua na próxima quinta-feira, aqui neste mesmo Buteco. O capítulo 2 ficará a cargo de Carvalho de Mendonça, que deverá encaixar a frase:
“Fique com o troco, seu animal!”
(Esqueceram de Mim)
Organização e edição: Lucas Paio
Arte: Renato Trindade