O formato está imersamente inserido na estratosfera midiática, e é objeto de inúmeros estudos acadêmicos. Então buscamos como base teórica os estudos de Arlindo Machado (2001), onde o autor divide o videoclipe em três grupos básicos. O primeiro ligado aos artistas/bandas que meramente fazem videoclipes como uma ferramenta promocional, um objeto que ilustra as músicas, e que segundo o mesmo, não vale a pena perder tempo com este grupo; o segundo grupo é formado pelos realizadores oriundos do cinema ou do vídeo experimental, que aliados a artistas mais ousados, acabaram por transformar o videoclipe em um campo vasto para a reinvenção do audiovisual; e por fim, um terceiro grupo, que trata o videoclipe como uma forma de audiovisual plena e auto-suficiente, capaz de sintetizar perfeitamente a junção de imagem e som. Este grupo é composto por outro tipo de realizador, músicos que além da composição de suas músicas, ainda se preocupam com toda a concepção visual do seu trabalho.
Por tanto, principalmente os artistas mais ousados, criadores de músicas experimentais que incorporam às suas canções distorções, ruídos e uma sonoridade pouco suportável aos ouvidos mais tradicionais, pensam em sua imagem como um todo. Toda esta geração de músicos passaram a integrar dentro do processo de criação de suas canções a concepção de seus vídeos, não mais separando música e imagem, as duas surgem justapostas no processo de criação, visando uma unidade maior ao conceito que o artista quer passar ao seu publico.
Todo este processo se tem origem na performance de uma banda ou artista, e é onde o videoclipe entrar como peça rompedora. E que possibilita expandir a visibilidade de uma banda. E é no terceiro grupo citado por Machado, que se concentra o ápice da produção videoclíptica e onde se insere um dos mais respeitados, criativos e bizarros realizadores do gênero, o inglês Chris Cunningham.
Se dentre os grandes realizadores de videoclipe, Michel Gondry sempre busca enfatizar em suas produções situações “fantásticas” e surrealistas, com clipes atraentes e intrigantes; ou Spike Jonze que procura representar o cotidiano de forma distorcida e divertida com os seus mockumentaries; Cunningham pode ser definido, talvez, por aquele sujeito que faz videoclipes para assustar as criancinhas. Mas não somente isto! Afinal Cunningham mostrou-se ser uma das mentes mais criativas das ultimas duas décadas e elevou o vídeo a um outro patamar.
Cunningham nos faz olhar o videoclipe com outros olhos e evidência que não existem limites para a arte audiovisual. Os seus videoclipes são verdadeiras obras primas, pinturas surrealistas, distorcidas e mergulhadas em alguns litros de ácidos que ganham vidas através deste artista plástico sedento por proliferar suas estranhezas. Criou um mundo extremamente único e peculiar, que nos causa medo, talvez por se aproximar muito do real. Seus trabalhos iniciais com artes plásticas e seus experimentos com efeitos especiais chamaram a atenção de muitos cineastas, e suas colaborações para alguns filmes o levou até Stanley Kubrick. Com o qual, Cunningham, vinha trabalhando na construção dos robôs protótipos, para o que viria a ser o longa A.I. Artificial Intelligence, se o mito não tivesse falecido!
Mas e se o A.I. de Kubrick tivesse sido feito, será que o videoclipe de All is Full of Love (1999) da Björk existiria? Cunningham nunca falou sobre o assunto ou ao menos relatou onde estariam os supostos robôs que por anos ele estava criando para o filme. Mas sendo restos de um trabalho inacabado ou não, fato é que o épico videoclipe além de encantador é uma das sete maravilhas do gênero. Um daqueles videoclipes que vale cada segundo e consegue otimizar e captar a pureza sublime e angelical contidas na canção.
O genial diretor e sua andrógena e perfeita criação. Se ainda existe alguma criatura no mundo que não viu, deleite-se:
Mas Cunningham não se resume apenas na criação do espetacular All is Full of Love. O realizador começou a nos aterrorizar através de seus videoclipes em 1996, o primeiro foi Second Bad Vilbel para a dupla eletrônica Autechre. Mas o reconhecimento do grande público veio com Come To Daddy (1997) feito para o DJ Richard D. James, mas conhecido como Aphex Twin. Os dois juntos criaram um universo retorcido, sombrio e cheio de figuras monstruosas, a química sinérgica e o nível de inspiração deles foram tão impressionantes, que a parceria foi além dos videoclipes. James passou a ser o criador “oficial” das trilhas sonoras dos vídeos e outros trabalhos do diretor, o que certamente se encaixa perfeitamente à atmosfera nebulosa por ele criada.
Em 2001 o diretor apresentou na bienal de Viena, juntamente com outros trabalhos, a videoinstalação Flex (2000), o resultado é algo fascinante, sem perder de vista as características do diretor. O vídeo transmite a imagem de um casal que como num balé, vai do céu ao inferno, sem sabermos ao certo se estão meio a um ato sexual ou se estão brigando, e isto esteticamente agrupado e misturado aos ruídos sintéticos de Aphex Twin.
Em suas produções, Cunningham, primordialmente vai do bizarro e disgusting ao sublime e catártico, abusando de elementos que deformam o corpo humano, com alusões que sugerem um erotismo exacerbado e claro, estranho. Vai das mais alternativas experimentações audiovisuais e transfere isto para o mais alto escalão da indústria cultural. Não foi a toa que até a rainha do pop, Madonna, se redimiu aos fascínios visuais do diretor ao convidá-lo para dirigir o videoclipe de Frozen (1998), que particularmente acho ser uma das mais belas obras dentre a extensa videografia da cantora.
Mas o pesadelo não termina por ai, se alguém consegue superar e extrapolar o bizarro ou qualquer indagação ao gênero, ah, este alguém é Cunningham. Um dos últimos trabalhos lançados pelo diretor, o curta de terror trash Rubber Johnny (2005), é o que há de mais estranho e perplexo, que audiovisualmente possa existir. Exageros a parte, o vídeo foi gravado com a utilização de câmera digital e infravermelho, e demorou cerca de quatro anos para ser finalizado. Mais uma vez o perfeccionismo do realizador nos causa arrepios. E para apresentar o título do assombroso vídeo, ele faz uma brincadeira nada ingênua com a palavra, rubber, que em inglês é também usada para designar “camisinha” e que aparece literalmente sendo “usada”.
Fique atento a cada detalhe e não ouse piscar. P.S.: recomendo que assista ao vídeo sozinho e no escuro:
Aliás, a capa de Rubber Johnny é tão assustadora quanto. Em 2008, o diretor fez um ensaio com a pomposa cantora Grace Jones para a revista Dazed & Confused, inspirada nas imagens morficamente modificadas de Rubber Johnny, provando que mais uma vez a arte não tem limites. Confira o ensaio da Dazed & Confused.
Infelizmente Cunningham deu uma parada em suas produções videoclípticas, o último dirigido por ele foi o eletrizante Sheena is a Parasite (2006) da banda The Horrors. O videoclipe tem a participação da atriz Samantha Morton, não é um dos mais impressionantes do diretor, mas mesmo assim foi banido pela MTV, não por que contenha cenas fortes, mas porque o videoclipe foi gravado usando efeitos de Strobe lights – e este efeito pode provocar convulsões e epilepsia fotossensível no expectador (cuidado). Cunningham, por sinal, produziu parte do segundo álbum do The Horrors (Primary Colours – 2009), levando um pouco mais de obscuridade ao já sombrio grupo. Agora é sentar e esperar, pois Cunningham deve estar preparando algo bem assustador aos nossos olhos e ouvidos.
E se no inicio do texto falávamos de situações efêmeras e videoclipes que padecem, este terminantemente não é o caso de Cunningham, que mesmo não tendo uma videográfica muito extensa, se firmou como um dos maiores realizadores do gênero. Suas composições audiovisuais acabam por gerar no expectador inúmeras sensações, sejam elas prazerosas ou completamente incomodas.