Filme: Contato, de Robert Zemeckis

Em termos de questões existencialistas, ciência e religião apesar de usarem caminhos diferentes, buscam alcançar o mesmo objetivo: a verdade absoluta

Será que a sociedade atual está preparada para o primeiro contato alienígena? Esta é uma das muitas questões levantadas por Contato, filme dirigido por Robert Zemeckis, com roteiro baseado no livro homônimo de Carl Sagan.

Carl Sagan foi um grande cientista e divulgador de ciência, atuando no programa espacial da NASA como consultor e de certa forma preparando a humanidade para um possível contato alienígena. Além do romance Contato, dos livros de divulgação científica, ele também ficou mundialmente conhecido como idealizador e apresentador da série de documentários desenvolvido para televisão: Cosmos, onde de forma poética ensinou para milhões de pessoas de forma extremamente simples e compreensível, os grandes mistérios do universo que os cientistas já haviam descoberto até então.

Carl Sagan era capaz de explicar as consequências reais das distâncias intergalácticas através de exemplos práticos de forma extremamente sensível. Por exemplo, quando olhamos para o céu noturno e avistamos uma estrela que está a milhares de anos-luz de distância da Terra, na verdade não estamos a vendo naquele exato momento, uma vez que a luz que saiu da estrela demora 10.000 anos para chegar a Terra. A conclusão é que ao olhar para esta estrela hoje, estamos vendo como ela era a 10.000 anos atrás! A estrela pode nem existir mais! Olhar para o céu é o mesmo que olhar para passado! Olhar para o céu é a única forma conhecida até hoje de viajar para o passado.

Usando o mesmo raciocínio acima, desde que o homem desenvolveu a tecnologia necessária no início do século XX, a Terra passou a emitir sinais de rádio em diversas frequências. A cena inicial do filme usa este efeito para nos levar numa viagem a partir da Terra para o espaço onde ouvimos diversos sinais de rádio diferentes, mas à medida que nos afastamos da Terra podemos perceber que passamos a ouvir cada vez menos e transmissões mais antigas. A viagem termina num silêncio absoluto, e uma nebulosa parece estar dentro dos olhos da protagonista Eleanor Arroway (Jena Malone jovem e Jodie Foster adulta).

Contato -02Ellie é uma menina órfã de mãe e que foi criada com imenso afeto pelo pai, Ted Arroway (David Morse). Se quando criança ela se diverte usando o rádio de longo alcance do pai, quando mais velha passa a trabalhar no programa SETI (search of extraterrestrial intelligence), que busca evidências de vida alienígena através da análise de sinais de radiotelescópios. Aqui já podemos ver que existe uma ótima relação entre infância e vida adulta da personagem, ao notar que ela continua fazendo a mesma coisa: tentando estabelecer contato com um sinal, uma mensagem vinda do céu.

E só esta característica já diz muito sobre a personagem, uma vez que além de sintonizar o sinal é preciso interpretá-lo através do reconhecimento de padrões nele. E esta é uma das mais belas ciências que existe, pois remete diretamente ao conceito de inteligência que nos define como seres humanos. A inteligência nada mais é do que a capacidade de inferir os padrões que existem na natureza e usar tais impressões para melhorar a sua capacidade de interação com o meio e reconhecimento de novos padrões.Contato -03

É interessante ainda notar que a inteligência de Ellie vem acompanhada de um enorme ceticismo religioso, e novamente fica fácil perceber que tais características foram influência de seu pai, que nunca entrega pra ela as respostas prontas, estimulando seu raciocínio lógico a todo instante como quando disse que Pensacola era uma região que possui muitas laranjas, ao invés de simplesmente responder “Flórida”. Outra resposta dele que evidencia o ceticismo é quando ele responde que por mais potente que seja um rádio, eles nunca mais iam se comunicar com sua falecida esposa, mãe de Ellie.

Depois de notar o tamanho da importância do pai na vida de Ellie, o espectador é surpreendido com a cena da morte dele por um infarto fulminante. Mesmo sem mostrá-lo, a cena é extremamente angustiante ao mostrar a jovem Ellie correndo em busca de remédios em câmera lenta pela casa até descobrirmos que na verdade estávamos vendo seu reflexo no espelho. Este é um dos mais geniais planos sequência da história do cinema, tanto pela excelente técnica de execução quanto pelo seu significado, tirando o espectador do filme por um momento, causando um instante de desconforto justamente quando nossa protagonista sofre um dos maiores golpes em sua vida.

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Essa é uma das principais características de Robert Zemeckis enquanto cineasta, trabalhar com os efeitos especiais não apenas pelos malabarismos, mas para que eles melhorem sua técnica narrativa, influenciando diretamente na interpretação e sentimentos dos espectadores. E sua marca registrada também, desde as imagens do Beatles na TV em Febre de Juventude ou em fatos históricos em Forrest Gump e até uma ilha imaginária em Náufrago, é tornar o efeito especial invisível para o espectador. Em momento algum percebemos o corte da câmera no plano sequência, mas sabemos que ele está lá, pois tal traveling é impossível.

Com a continuação da história, a discussão do tema principal do filme se aprofunda: a dualidade entre religião e ciência, ceticismo e fé, razão e crença; e isso é apresentado em tela através da chegada de um novo personagem, Palmer Joss (Matthew McConaughey) um teólogo que vai ganhar a atenção de Ellie ao repetir uma frase de do pai dela: “Se estamos sozinhos no Universo, será um desperdício imenso de espaço.”

Contato -05O roteiro de Contato é brilhante, tanto pelo caminho que história percorre quanto pela riqueza de pequenos de detalhes que a todo instante ajudam a construir os personagens e a mover a história pra frente. A dupla jornada de Ellie, tanto profissional quanto pessoal está recheada de elementos que muitas vezes se confundem e se complementam de forma harmoniosa.

As atuações que merecem destaque ficam para a impecável Jodie Foster e sua sutileza em construir tão bem uma personagem de personalidade forte e decidida, mas ao mesmo tempo assombrada por fantasmas do passado e insegura em alguns momentos em relação à grande descoberta que se apresenta a sua frente. Matthew ainda inseguro em sua carreira encanta mais pelo carisma do que pela sua atuação em si, não conseguindo ser tão convincente no papel quanto Jodie Foster. Tom Skerritt no papel de David Drumlin, um antagonista (guardião de limiar do formato clássico da jornada do herói) se sai bem com um ar levemente canastrão. Jake Busey interpretando o fanático religioso Joseph, como outro antagonista é tão expressivo em seu radicalismo que chega a assombrar a protagonista mesmo com pouquíssimo tempo de tela.

Por outro lado, John Hurt depois de fazer papéis icônicos em filmes de ficção científica como Alien, o Oitavo Passageiro e 1984, passou a fazer diversas aparições como coadjuvante nos filmes do gênero, mais para emprestar seu carisma do que para agregar com suas atuações, normalmente sem sal como em S.O.S. – Tem um Louco Solto no Espaço, V de Vingança e Expresso do Amanhã. Já em Contato, sua presença como um bilionário excêntrico que deveria servir como um mentor para Ellie, um substituto para seu falecido pai, que acreditasse e investisse em sua pesquisa, chega a ser o ponto mais fraco de um filme difícil de encontrar defeitos.

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A produção foi muito inteligente ao deixar o filme com alta representatividade, centralizando as ações numa das personagens femininas mais marcantes do cinema (certamente uma das minhas favoritas) e ao colocar um deficiente físico que usa sua habilidade de identificação de padrões sonoros melhor do que o mais avançado dos computadores do laboratório onde trabalha.

 

Zona de Spoilers

Merece elogio toda a sequência em que o sinal é recebido pela primeira vez. A mistura de emoções entre euforia e apreensão. A revelação de que a primeira mensagem dos alienígenas para nós eram cenas do Hitler durante as Olimpíadas de Berlim deflagra o quanto a humanidade se ressente e tem vergonha de coisas que aconteceram num passado tão recente como a escravidão ou o holocausto. A explicação é clara e muito convincente, os alienígenas estão devolvendo para nós a primeira transmissão de televisão que emitimos, é a forma deles nos avisarem que a receberam. A mensagem enviada de volta não passa de um reflexo de um espelho e a humanidade atualmente tem vergonha do que enxerga nele.

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A fotografia da praia onírica e artificial reforça a dualidade entre o espetacular e a imaginação. Obviamente temos evidências para interpretar que tanto a praia quanto seu pai foram criados a partir das memórias da infância de Ellie, para que ela não estranhasse uma realidade inédita para ela. E aqui existe a referência ao quarto de hotel de 2001, uma Odisséia no Espaço criado pelos alienígenas para acolher Dave Bowman, ou ainda a criação de Rheya a partir das memórias de Kelvin em Solaris.

A pergunta de Ellie para ganhar o cargo na nave é muito boa: como fazer com que a humanidade não se destrua com o avanço tecnológico antes de chegarmos ao ponto de poder colonizar outros planetas? O interessante é que o nível de ética da sociedade e atual conjuntura política demonstram que realmente não estamos preparados para lidar com vida alienígena inteligente. É nítido como perdemos tempo com picuinhas diante da grande oportunidade de fazer nossa sociedade dar um salto e isso é representado pela reação das pessoas que vão para frente das instalações onde a máquina está sendo construída.Contato -08

Além das idéias já apresentadas, o grande trunfo de Contato é a inversão de papéis entre fé e descrença. No meio do filme temos alguns diálogos entre Ellie e Palmer acerca destas questões. Ela assertivamente aborda questões que a religião não explica e nem quer explicar. Ele responde com uma pergunta acerca do amor dela pelo pai, não para convencê-la de que Deus existe, mas sim para mostrar pra ela que nem tudo na vida é preciso ter evidências comprovadas, e que algumas coisas só precisam ser sentidas.

No final, ela passa por uma experiência quase que religiosa, e se vê acuada ao não conseguir comprovar que sua viagem ao centro da galáxia tinha sido real, restando a ela pedir que seus colegas a dêem um voto de confiança, que acreditem e tenham fé nela. Fé esta que ela sempre se recusou a aceitar.

Contato -09A grande verdade é que o amor dela por Palmer é igual sua crença. Ela ama discordar dele, assim como em sua posição de atéia, ama a idéia de que não existe uma evidência de existência de um criador, mas ao mesmo tempo espera encontrar tal evidência, uma assinatura divina escondida na linguagem matemática na natureza que só olhos mais atentos aos seus padrões possam identificar.

Carl Sagan era reconhecidamente um ateu capaz de enaltecer a imensidão do Universo e a grandeza das descobertas científicas sem atacar diretamente nenhuma religião, mas no fundo, indiretamente e de forma extremamente elegante era exatamente isso que ele fazia. Conhecendo sua obra, não é difícil fazer a associação entre ele e Ellie e descobrir que ela é o alter ego do autor. Carl Sagan falou conosco, fez sua pregação através de Ellie. E a grande mensagem dele é que só mesmo uma descoberta científica como a evidência de que um Deus existe ou existiu, ou ainda, de que vida inteligente alienígena existe seja o que está faltando para que os habitantes do Planeta Terra se unam e finalmente evoluam com sociedade.

 

Trailer

Texto originalmente publicado no Art Perceptions

 

Informações Técnicas

  • Diretor: Robert Zemeckis
  • Baseado no Romance Homônimo de Carl Sagan
  • Roteiro: James V. Hart e Michael Goldenberg
  • Elenco: Jodie Foster e Matthew McConaughey
  • Gênero: Drama / Ficção Científica
  • Ano: 1997
  • Orçamento: U$90 milhões
  • Arrecadação: U$170 milhões
  • Idioma: inglês
  • País: Estados Unidos
  • Duração: 150 minutos
  • Locação das Filmagens: Fiji, Porto Rico e diversos lugares dos EUA (Arizona, Florida, Washington, Califórnia, Novo México)

 

Referências

Contato

Robert Zemeckis

Carl Sagan

Cosmos

Jena Malone

Jodie Foster

David Morse

Febre de Juventude

Forrest Gump

Náufrago

Matthew McConaughey

Tom Skerritt

Jake Busey

John Hurt

Alien, o Oitavo Passageiro

1984

S.O.S. – Tem um Louco Solto no Espaço

V de Vingança

Expresso do Amanhã

2001, uma Odisséia no Espaço

Solaris