Ao escrever sobre As Mil e Uma Noites: Volume 2, mencionei a desistência momentânea do cineasta Miguel Gomes e seus co-roteiristas Telmo Churro e Mariana Ricardo de incluir alusões às “Mil e Uma Noites” originais, permitindo que seus contos sociais (cof, cof, cãozinho fantasma…) fluíssem de maneira orgânica e razoavelmente estruturada – apesar, como apontei, da precariedade de seus roteiros e atuações. Não que eu não goste da ideia de usar os contos de Xerazade como o centro narrativo de um projeto essencialmente fragmentado como este (e se você ler meu texto sobre sua primeira parte, verá que elogiei a proposta narrativa de Gomes, considerando-a não apenas divertida, mas também ambiciosa); mas é justamente a necessidade dos realizadores de conectar peças de quebra-cabeças diferentes que prejudicaram tanto O Inquieto, um filme que considero eficiente e intrigante, mas também extremamente problemático.
Assim, foi para minha surpresa que vi este Volume 3 ter início com uma longa sequência de mais de quarenta minutos focados na figura de Xerazade (vivida com uma sensualidade absurda pela deslumbrante Crista Alfaiate) e que – acreditem! – funciona extremamente bem em sua tentativa de modernizar os conflitos vividos pela personagem na história original – uma surpresa que foi imediatamente apagada pela decepção de ser obrigado, depois disso, a assistir a uma hora e meia de um longo, desinteressante e extremamente auto-indulgente (pseudo?)documentário sobre um grupo de homens cujo hobbie é treinar tentilhões para concursos de canto.
Sim, As Mil e Uma Noites: Volume 3, O Encantado é basicamente um filme sobre passarinhos.
Melhor dizendo, é um filme ruim sobre passarinhos.
Não fazendo o menor sentido dentro da proposta que os volumes anteriores estabeleceram – e se um bom cinéfilo não deve pré-conceber expectativas sobre filmes que ainda não viu, um bom cineasta deve ao menos se esforçar para cumprir as expectativas que ele mesmo gerou dentro da narrativa -, o longa-dentro-do-filme (na falta de um termo melhor) já se mostra um desastre completo por jamais dizer a que veio: não funciona como estudo de personagens, já que nenhum daqueles homens que vemos na tela se desenvolve minimamente para isso; não funciona didaticamente para nos apresentar ao universo daquele esporte (e por menor que seja meu interesse em tentilhões, eu jamais poderia condenar o projeto se este assim o fizesse; e, por fim, não funciona como metáfora ou analogia a nada – mesmo que chova cinéfilos e críticos encontrando “comentários” e “reflexões” sobre a crise europeia até das diferentes formas dos passarinhos cantarem.
Aliás, acho que saquei o truque de Gomes: ao mastigar logo de cara para o espectador sua posição sobre as medidas de austeridade tomadas pelo governo de seu país e a catástrofe econômica de seu continente (como ter outra?) e gritar aos quatro ventos sua suposta tese com este projeto, o sujeito garante que sempre haverá alguém projetando esta ou aquela analogia ao que quer que seja, mesmo que este “o que quer que seja” não passe de uma história tola de um cão fantasma perseguindo seu duplo vivo ou uma infinidade de planos de pássaros e de seus donos obcecados por seu canto.
Obviamente trollando o espectador (e quem duvida precisa explicar as legendas que nos informam as dúzias de vezes em que Xerazade interrompeu sua história pela manhã e voltou a conta-la no início da noite enquanto absolutamente nada acontece nelas – a não ser, claro, que um homem alimentou seus pássaros, o outro se confundiu com as regras da competição e daí por diante), Gomes só não transformou esta terceira parte de As Mil e Uma Noites em uma sessão de tortura talibã por ter escalado Alfaiate para um papel feito para ela.
Eu seria capaz de ouvi-la cantarolar “Perfidia” em loop no pé do meu ouvido por muito mais que mil e uma noites.
As Mil e Uma Noites: Volume 3, O Encantado (Idem, Portugal, 2015). Escrito e dirigido por Miguel Gomes. Com Crista Alfaiate, Dinarte Branco, Carloto Cotta, Adriano Luz, Joana de Verona, Rogério Samora, Maria Rueff, Cristina Carvalhal, Luísa Cruz, Américo Silva, Diogo Dória, Bruno Bravo, Tiago Fagulha, Teresa Madruga, Chico Chapas, Carla Maciel e Margarida Carpinteiro.