38ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo #34
Em Branco Sai Preto Fica, o espectador é constantemente desafiado a identificar a finíssima linha que separa documentário e ficção: por um lado, Marquim e Shockito, seus personagens principais, respondem exatamente pelo mesmo “nome” de seus intérpretes, dividem com eles uma série de características em comum e chegam a dar, mesmo que seja em um único momento ao longo da projeção, uma entrevista clássica no formato clássico do documentário, olhando para o documentarista; por outro, sua trama contém uma série de elementos de ficção científica e caminha para um desfecho tão absurdo que seria impossível associá-lo a qualquer evento da vida real de seus protagonistas. A pergunta portanto é: o que é real e o que não é?
Na realidade, pouco importa, já que o resultado final do projeto escrito e dirigido por Adirley Queirós fascina justamente por essa sua ambiguidade conceitual.
Deficientes físicos – o primeiro precisa de uma cadeira de rodas e o segundo usa uma prótese no lugar de uma perna amputada -, Marquim e Shockito foram vítimas de uma “batida” policial em um show black no “Quarentão”, na Ceilândia (DF), na década de 80, quando ouviram a frase do título e várias outras (“Putas prum lado, veados pro outro!”) que denunciavam o profundo preconceito alimentado por aqueles oficiais. Já em um “hoje” que nós não sabemos ao certo qual é, eles recebem a visita do misterioso Dimas Cravalanças (Durães), que, aparentemente vindo do futuro, que é constantemente visto recebendo ordens para colher provas de toda a opressão que a raça negra já sofreu ao longo da história e contratam o DJ Jamaika para fazer uma espécie de mix tape, que, reunindo rap, funk, black e forró, deverá ser usada em um experimento secreto envolvendo o estranho tubo encontrado na casa de Marquim.
Ambientado em locações sucateadas, sujas e sem acabamento onde computadores convivem com quinquilharias e ferro velho, Branco Sai Preto Fica é uma espécie de sci-fi-doc do gueto, fazendo uma mistura que, por si só, já confere certo charme ao projeto – mas, misturando cenas do cotidiano de seus personagens a fotografias do incidente no “Quarentão” e a narrações em off que muitas vezes contradizem o que os personagens dizem em momentos diferentes (afinal, Shockito perdeu mesmo a perna naquela noite?), o longa se sustenta mesmo é nas ideias ambiciosas que Queirós se propõe a discutir, usando sua trama mais “superficial” como analogia dos temas centrais de sua preocupação.
(E é aqui que eu sugiro que você que ainda não assistiu ao filme interrompa a leitura deste texto).
Discutindo a dívida histórica que a civilização ocidental acumula com a raça negra (e o fato de, em pleno 2014, ainda termos que discutir as cotas raciais é sintomático a esse respeito), Queirós cria uma trama de conspiração em que a sede do Governo Federal se transforma na representação maior de uma sociedade historicamente opressora – e não é à toa que “bomba” desenvolvida por Marquim, Shockito e o DJ Jamaika esteja recheada de cultura afro, como se a necessidade daqueles indivíduos fosse simplesmente a de difundir suas raízes e sua cultura, mesmo que à força, e não pagar a violência com mais violência (é interessante notar, aliás, a saída de mestre encontrada pelo cineasta para contornar as limitações financeiras de seu projeto ao utilizar os desenhos feitos por Shockito ao longo de toda a projeção como um elemento narrativo fundamental para a narração de seu clímax).
Com um senso de humor bastante peculiar (e extremamente divertido) e um clima de paranoia essencial para seus propósitos temáticos, Branco Sai Preto Fica é um trabalho desafiador e instigante que merece não só ser lançado, mas receber atenção especial no circuito exibidor – uma utopia que só decepciona os amantes do Cinema nacional.
Branco Sai Preto Fica (Idem, Brasil, 2014). Escrito e dirigido por Adirley Queirós. Com Marquim do Tropa, Shockito, Dilmar Durães e Gleide Firmino.