BOYHOOD – DA INFÂNCIA À JUVENTUDE É UM FILME AMBIGUAMENTE DELICADO. Primeiro, porque se trata de sensível trabalho de Richard Linklater – embora isso até possa soar redundante, já que o diretor esbanja doçura e fluidez em quase todos os seus longas anteriores (vá lá, a despeito de algumas irregularidades, como o equivocado-porém-crítico Nação Fast Food). Depois, porque se trata de um filme… ahn… de fato, “delicado” – sobre o qual o olhar da crítica recai com dura dificuldade. Ora, ao mesmo tempo em que o trabalho do diretor é um longo e belíssimo exercício de criação cinematográfica, seu resultado pode soar, por muitas vezes, obsessivo e (sim, sinto afirmar) muito frustrante.
“Quem você quer ser, Mason? O que você quer fazer?”
“Eu quero tirar fotos. Fazer arte.”
“Qualquer merdinha pode tirar fotos, Mason. Mas arte… isso é especial. O que você pode nos apresentar que ninguém mais pode?”
O longa é todo um compêndio de cenas filmadas ao longo de doze anos de esforços do diretor e de sua equipe. De 2002 a 2014, Linklater reuniu anualmente todos os atores para compor o cenário adolescente da vida de Mason Evans Jr (Ellar Coltrane), dos 6 aos 18 anos, sob as mais diversas perspectivas: as primeiras devastações amorosas, as relações familiares conflituosas, as amizades, as frustrações. Nesse sentido, acompanhar o desenvolvimento daqueles personagens – tanto narrativo quanto físico, de forma indissociável – é, sem dúvida, uma das mais intrigantes sensações que já tivemos no cinema.
Sim, trata-se de uma curiosa reação de estranhamento. Ora, estamos tão habituados à suspensão da descrença – como acontece, por exemplo, quando aceitamos que um personagem possa ser interpretado por certo ator quando criança e por outro quando adulto – que, ao observarmos o mesmo ator crescendo em tela, ali, na nossa frente, em quase três horas de projeção, a expressão “mágica do cinema” ganha uma proporção terrível e encantadora. Na cabeça, rola tipo um “que bruxaria é essa?”
Cabe anotar que essa perspectiva de acompanhar o crescimento dos atores para contar uma história não é inédita no cinema. O diretor Michael Apted (de As Crônicas de Nárnia: A Viagem do Peregrino da Alvorada e 007 – O Mundo Não É o Bastante) tem uma sequência de documentários, chamados de The Up Series, em que acompanha a vida do mesmo grupo de pessoas a cada sete anos (o último, lançado em 2012, ainda está no 56 Up – e contando). O próprio Linklater, fascinado pelo tempo, também brinca com Jesse e Céline em sua Trilogia do Antes. E até mesmo Tarantino já se mostrou ansioso a esperar o crescimento de Ambrosia Kelley, a filha de Vernita Green (Vivica Fox) em Kill Bill, para dar continuidade à série no cinema.
Dessa forma, a verossimilhança funciona para o escopo narrativo com preciosismo e enorme função catártica. Mais que um recurso, ela é parte da história. E Linklater sabe como jogar esse jogo: até mesmo quando, num corte de um ano, revela um Ellar (ou Mason?) com rosto, cabelos e corpo diferentes, ele sabe para onde conduzir o espectador e como criar o choque que pretende. É um diretor de enormes recursos.
“Este é o pior dia da minha vida. Eu sabia que ele chegaria, mas por que tão cedo? Primeiro eu me caso, tenho filhos, dois ex-maridos, volto a estudar, colo grau, faço mestrado, mando dois filhos para a faculdade. E o que vem a seguir? A merda do meu próprio funeral?”
O grande trunfo do filme está em nunca desvirtuar daquilo a que se propõe. Por isso, Linklater jamais tira os olhos de Mason (ou Ellar?), e é curioso como sua perspectiva narrativa é sempre reflexo de sua vivência: no início, quando o menino ainda vê o pai como herói, não é incomum que a câmera observe Ethan Hawke (o pai) em contra-plongée, aumentando sua importância; à medida que o tempo passa, entretanto, os atores se equivalem em altura e a câmera acompanha esse crescimento, não sem voltar a engrandecer o pai quando Ellar o faz narrativamente. Montagem simples, objetiva e funcional; por isso, genial.
Ao mesmo tempo, essa fixação com a estrutura parece esquecer que ali por trás há uma história, que, por um lado, não apresenta grandes conflitos (e isso é um trunfo do filme, que prefere a subversão da fórmula comum das grandes reviravoltas e surpresas), mas que, por outro, também parece se perder em seu próprio encanto formal, numa decupagem longa demais e, por vezes, cansativa. A tentativa de manifestar em diálogos longos – e, convenhamos, muitas vezes exagerados – sensações e angústias adolescentes destoam do todo narrativo até então. Incomodam. É natural, por exemplo, que tal rebuscamento aconteça em Antes do Amanhecer, já que Céline e Jesse evocam um tour-de-force intelectual e sexual durante toda a história; ambos competem pela supremacia do diálogo. Em Boyhood, entretanto, Mason (o Ellar), ao verbalizar qualquer desejo ou sentimento, soa pedante, muitas vezes, sem qualquer motivo aparente. Chato mesmo.
Ou talvez eu esteja ficando velho, e isso conta muito, numa narrativa tão adolescente. A dessemelhança entre o que Ellar (o Mason) representa e o que muitos de nós fomos talvez nos dê um distanciamento involuntário da narrativa – que, se nos garante apreciar sua grandeza formal, talvez termine por nos afastar de seu espírito.
[tresemeia]