38ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo #4
O Segredo das Águas, novo filme da cineasta japonesa Naomi Kawase, se propõe a discutir temas humanistas e/ou filosóficos como a passagem para a vida adulta, o medo da morte e sua relação antagônica com a atemporalidade da natureza, a incapacidade humana de comunicar seus sentimentos mais íntimos e as carências afetivas femininas diante de homens emocionalmente frágeis e instáveis. E se você está se perguntando como é possível refletir acerca de todas essas questões em apenas duas horas de projeção, já entendeu qual é o maior problema do filme, que, sensível em seu tratamento com seus personagens, falha ao não se decidir quanto ao foco que quer dar a suas reflexões.
Utilizando um elemento de thriller como desculpa para que haja o mínimo fiapo de história (e que será esquecido durante boa parte da projeção), o longa tem início quando o calado adolescente Kaito (Murakami) encontra um corpo boiando no mar revolto da pacata Ilha de Yoan, onde mora com a mãe. Emocionalmente afetado pela tragédia que passa a ser investigada pela polícia, ele se fecha ainda mais em sua introspecção, passando a tratar a melhor amiga Kyôko (Yoshinaga) com certa frieza e manifestando à mãe o interesse de viajar a Tóquio a fim de visitar o pai, o tatuador Atsushi (Murakami), que não vê há anos. Enquanto isso, Kyôko recebe a notícia de que o estado de saúde de sua mãe Isa (Matsuda) se agravou e que ela e seu pai (Sugimoto) podem ter poucos dias para se despedir dela.
Parecendo caminhar em uma direção diferente a cada quinze minutos, O Segredo das Águas se sustenta graças à delicadeza com que Kawase trata seus personagens: apavorado pelas contradições morais e sentimentais trazidas pelo “amadurecimento” e pelo mistério que o sexo ainda lhe representa (assim como pelo mar, em uma metáfora óbvia, eu sei), Kaito rejeita Kyôko, explode com a mãe e busca refúgio no apartamento entulhado do pai ausente não por ingratidão ou rebeldia, mas pela própria incapacidade de lidar com as transformações que os hormônios têm trazido. É por motivos semelhantes, aliás, que Kyôko, que é vivida com uma vivacidade contida pela ótima Jun Yoshinaga, busca o calor físico e afetivo do amigo, transformando aquele amor na válvula de escape de uma vida de perdas.
Porque se fosse possível apontar, em meio à desordem temática e estrutural do roteiro de Kawase, o núcleo do argumento de O Segredo das Águas, este seria a inevitabilidade de nossa finitude – que, observada por uma natureza impassível em sua calmaria (daí o título Still the Water, cuja melhor versão em Português talvez fosse “A Água Fica”, e as diversas contraposições em que Kawase e a co-montadora Tina Baz contrastam o lento ritual de despedida de Isa a imagens de sua árvore de quinhentos anos e a travellings aéreos que registram a imensidão tanto das águas do mar quanto das matas que se estendem pela cadeia de montanhas que cerca o povoado), deve ser vista, como apenas os adultos presentes em seu leito de morte conseguem entender, apenas como mais uma das capacidades que nos definem como seres.
E só por essa belíssima sequência O Segredo das Águas já merece ser visto – ainda que seu roteiro insista em diálogos óbvios que não fazem jus às reflexões que representam (“Por que as pessoas nascem e morrem?”;”Se foi destino, então por que eles se separaram?”; “Tenho medo do mar”/”Por que?”/”Porque ele está vivo”/”Eu também estou viva”) e em tentar abraçar o mundo quando poderia apenas se esforçar para ir o mais fundo possível no difícil tema que escolheu desenvolver em seus momentos mais tocantes.
(Still the Water, Japão, 2014). Escrito e dirigido por Naomi Kawase. Com Nijirô Murakami, Jun Yoshinaga, Miyuki Matsuda, Tetta Sugimoto, Makiko Watanabe e Jun Murakami.