Atenção! O texto abaixo pode conter spoilers. Convém apreciar com moderação!
É UM EXERCÍCIO INTERESSANTE observar as semelhanças entre Trash – A Esperança Vem do Lixo e o projeto anterior do mesmo diretor, Tão Forte e Tão Perto: ambos desenvolvem suas tramas a partir de enigmas a serem descobertos, aqueles a resolverem-nos são as personagens infantis, e estas são cercadas pela tragédia em sua vivência. Stephen Daldry parece ter se habituado a esta zona de atuação, embora seu longa passado não tenha funcionado tão bem como deveria. É perceptível, então, uma evolução, pois a nova investida de Daldry funciona bem melhor do que sua antecessora.
Na co-produção Brasil-Inglaterra, somos levados a uma comunidade pobre do Rio de Janeiro, onde Raphael (Rickson Tevez) e Gardo (Eduardo Luís) vivem. Suas infâncias são passadas num cenário onde a inocência não existe – o trabalho é rotina desde cedo, e a violência é conhecida de perto. É interessante observar este panorama desde o início; diferentemente do que o senso-burguês costuma apontar, a violência aqui não parte da população pobre, e sim da polícia, utilizadora da opressão sobre a comunidade para dominá-la sem maiores problemas – o crime existe também entre esta, mas propiciado justamente por tantas formas de opressão, seja a policial, ou a da desigualdade social através da luta de classes.
Pode-se dizer que Trash – A Esperança Vem do Lixo trata da opressão, em suas mais variadas formas. O cenário no qual vivem os protagonistas infantis é um retrato da opressão provocada pela desigualdade social, pela luta de classes e pelo funcionamento do aparato policial. A entrada do enigma na trama seguirá o mesmo caminho – trata-se de uma carteira deixada por José Ângelo (Wagner Moura, de Praia do Futuro), morto pela polícia justamente por algo que aquele objeto guarda, e que poderá colocar em risco os esquemas de corrupção de alguns expoentes da elite carioca. José é o símbolo do fiapo de esperança que ainda restava na legítima democracia, aquela onde a igualdade predomina e a liberdade para expor aquilo que deve ser exposto é assegurada.
A quebra do status quo, onde normalmente aquele oriundo da favela seria o criminoso, e o mais abastado seria a vítima, o benfeitor, tona-se ainda mais interessante quando observamos que parte da visão de um artista estrangeiro sobre o panorama de nosso país – e poderiam ser muitos outros países, diga-se -, enquanto muitos dos mais abastados deste próprio país preferem fechar os olhos, negar a existência da luta de classes. A narrativa acertadamente opta por não fazê-lo – retrata as classes mais pobres sem julgá-las por seus anseios ou ignorar suas injustiças.
Embora a missão seja louvável, o roteiro de Richard Curtis (de Questão de Tempo) – com base no livro de Andy Mulligan – abre certas concessões para cumpri-la, seja com diálogos encomendados – “Fizemos por ser o certo.” – ou conveniências para dar andamento à resolução do enigma – o policial Frederico (Selton Mello, de O Palhaço) entra exatamente no quarto onde as pistas foram deixadas; a filha de José Ângelo, que pensávamos estar morta, surge misteriosamente após estar por dias abrigada, sozinha, num cemitério -, e ainda sub-desenvolve as personagens de Rooney Mara (de Terapia de Risco) e Martin Sheen (de O Espetacular Homem-Aranha), que acabam apenas servindo como auxiliadoras para os garotos.
Sem fugir desta questão, outro acerto do filme é a fuga das morais reprováveis costumeiramente adotadas em retratações do Cinema norte-americano – embora esta não seja necessariamente uma destas – sobre outros países – aqui, as personagens americanas não funcionam como a intervenção heróica para os cidadãos locais, mas como um componente de suas jornadas. Se José Ângelo fora o elo de origem e os garotos foram os responsáveis por levá-lo até seu destino, as personagens de Mara e Sheen são peças intermediárias neste quebra-cabeça.
Deixo para o final o ponto que mais denota um amadurecimento de Stephen Daldry em relação ao seu trabalho anterior: o diretor deixa a necessidade do pesar e maniqueísmo excessivos para carregar sua narrativa. O que era tão exagerado em Tão Forte e Tão Perto – utilizador abusivo de recursos sonoros e visuais para evidenciar o drama de seu protagonista -, adota a medida certa no desenvolvimento de Trash – A Esperança Vem do Lixo, que sabidamente nota no contexto social de suas personagens o peso dramático necessário, e direciona o desenvolvimento narrativo à resolução do enigma, à conquista dos garotos, que vivenciavam uma aventura naquela jornada – a trilha sonora incidental, de boas escolhas da música nacional, contextualiza com perfeição a atmosfera adotada, enquanto a fotografia assinada Adriano Goldman evidencia os climas quentes e a diversidade local através de sua abundância de tons.
A abordagem ideológica do texto de Curtis garante a importância social da obra, enquanto a condução narrativa de Daldry é capaz de torná-la instigante e divertida. Deixe ser convencional, desde que seja capaz de provocar engajamento através da Arte.
[tresemeia]