O QUE NOS FAZ HUMANOS? NOSSOS DESEJOS, ASPIRAÇÕES, ANSEIOS? OU MESMO OS MEDOS, TRISTEZAS, INSEGURANÇAS? Seria essa busca incessante, e muitas vezes árdua, por felicidade em si e no outro? A procura que nos une e nos torna empáticos a quem nem sequer conhecemos? A dor que cremos ser uma só? A certeza é que não é possível ser humano em partes; e não será a cor de nossa pele, nosso gênero, orientação sexual, a fé que professamos, a língua que falamos, o local de nosso nascimento que nos dará humanidade. E certamente não será um número par de cromossomos. O que faz de Colegas admirável, apesar de seus claros problemas, não é o fato de seu trio de protagonistas serem portadores da Síndrome de Down, mas sim a luta sincera na tentativa de atingir suas realizações, demonstrando que não há limite para o sonho.
O filme inicia apresentando os três personagens principais, Stalone (Ariel Goldenberg), Aninha (Rita Pokk) e Márcio (Breno Viola). Eles vivem em uma instituição que abriga crianças e jovens com Síndrome de Down. Cada um tem uma história diferente de abandono ou rejeição por parte dos familiares. Por trabalhar na locadora do lugar, Stalone tem acesso a inúmeros filmes, e acaba se apaixonando por cinema. Por influência de seu filme favorito, Thelma e Louise, se junta aos amigos para roubar o carro do jardineiro e fugir rumo ao sul, onde cada um tentará realizar um sonho pessoal. Durante a fuga, e depois de roubar um posto de gasolina, eles vão cruzar o caminho de vários outros personagens, que podem ajudá-los ou atrapalhá-los nos seus planos, que incluem outros crimes.
É, você leitor esperto do Cinema de Buteco já percebeu, pelo parágrafo acima, que o longa adotará uma clara estrutura de road movie. Infelizmente, o diretor Marcelo Galvão, apesar de seu envolvimento emocional com o tema (ele convivia na infância com um tio que sofria da Síndrome), não está à altura do projeto. Filmando suas cenas de maneira deselegante e criando transições sem imaginação, o diretor torna seu filme excessivamente episódico e erra até mesmo nos princípios mais básicos da narrativa cinematográfica, como ao adotar uma narração em off problemática, que dá a Lima Duarte, também personagem, acesso irrestrito aos sentimentos do trio, o que no contexto soa estranho.
Porém, esses são defeitos pequenos quando se percebe a que o diretor não compreende minimamente a estrutura que se propõe. Vamos lá; o filme não sabe dosar o tom de fábula, que marca as cenas do trio fujão, e realista, quando se concentra nos esforços policias (aliás, irritantes como poucos). Por vezes ele é extremamente sério nos momentos que acompanhamos os garotos, por outro os oficiais da lei são exageradamente ridicularizados. Essa indecisão chega ao ápice no terceiro ato na Argentina, um verdadeiro Frankenstein narrativo. O diretor não parece nem mesmo ter noção do material que tem em mãos, pois cria uma lógica de constantes referências a filmes. No entanto, se essa estratégia faz sentido ao lidar com o grupo liderado por Stalone, pois os personagens são apaixonados por cinema e por isso podem citar frases famosas, ao distribuir sem critério menções a outras obras, o sentido se perde. Além disso, é possível entender o amor que o trio sente pelo cinema como uma demonstração do que ele tem de lúdico, da capacidade dos filmes em nos levar para outros lugares e realidades. Mas da forma porca como é feito, esse conceito se perde. Vira uma caçada gratuita de referências.
O roteiro do próprio diretor é recheado de clichês, com diálogos sofríveis e situações absurdas (no mal sentido). Sem medo de criar uma história na qual a noção de jurisdição é desconhecida por todos (mas, ei, isso pode gerar só um conflitozinho internacional), o roteirista não liga em dar alguma profundidade aos seus personagens, que agem de acordo com o necessário no momento. Percebam como a dupla de policiais muda de opinião sobre os jovens de uma hora para outra, se comportando de maneira exemplar, quando, pouco antes, tinham sido extremamente abusivos. O pior, entretanto, é perceber como o estereótipo gay é usado em dois momentos diferentes no filme para gerar (sem sucesso) humor. Se em qualquer projeto isso seria reprovável, aqui se torna quase criminoso. Para ajudar, a montagem, também de Galvão (triplo combo), é capenga, saltando de uma cena a outra sem a menor coerência, o que transforma o filme, em seus meros 99 minutos, em uma experiência que parece ser bem maior.
Se Marcelo Galvão não consegue destruir toda a produção é devido ao extremo carisma dos intrépidos protagonistas e o respeito que o diretor claramente sente por eles. Ah como o filme melhora quando os três estão em cena à vontade (ou seja, sem protagonizar referências vazias a outros filmes, como Jules e Jim, que não acrescentam nada ao contexto). Sem mascarar a sua síndrome, cada um do trio tem uma personalidade encantadora. Stalone é um líder nato, por saber dirigir e ter uma autoconfiança que lhe permite criar planos e decidir o papel que os outros dois vão desempenhar nos roubos. Ele só fica abalado quando começa a se interessar por Aninha, menina sonhadora, que quer encontrar o amor e se casar. O olhar que ela dirige a um cantor em certo momento da trama é tocante. Há ainda o Márcio, que é… bom, o Márcio é folgado pra caramba, do tipo que oferece autógrafo no cartaz de procura-se com sua foto. O clima de camaradagem entre eles é evidente, e marca a interação de todos.
O filme não foge da condição dos protagonistas, e assim outros personagens remetem ao grupo como retardados ou “asiáticos meio esquimós”. A infantilização, óbvia devido à síndrome, os torna ainda mais interessantes, com seus abraços fortes e sentimento sincero. Assim, o trio faz uma reza sem sentido antes de comer, Stalone revela que um gesto romântico foi tomado enquanto “fazia cocô”, e Márcio pode celebrar um casamento, pois é “Deus de seu mundo”. Contudo, em uma decisão inteligente (e corajosa) do diretor (ei, tinha que ter algo), o filme não nega experiências adultas ao grupo, com Márcio se engraçando para cima de mulheres em uma festa (e respondendo, quando uma aponta que existem muitas diferenças entre eles, que ele gosta de gordas), e uma longa cena com closes dos beijos entre Stalone e Aninha, e mesmo a insinuação de uma noite de amor.
Pontuado por canções de Raul Seixas, o que faz completo sentido no contexto, e utilizando nos créditos finais fotos dos mais de 70 garotos com Síndrome de Down que participaram da produção, Colegas, mesmo com seus grandes defeitos, nos lembra de que o conceito de normalidade é muito mais amplo do que acreditamos. O narrador afirma que os personagens estavam “vivendo como adultos e se divertindo como crianças”. Não é o que queremos? Se Márcio precisa gritar que é normal é porque o trio não pode escapar de sua condição; eles são, como todos nós, humanos. Inabalavelmente humanos.
Nota:[tres]