INT. ESTAÇÃO DE TRABALHO – DIA. NATHÁLIA olha fixamente para a tela do computador e observa o cursor piscar na página em branco. É possível ouvir, à distância, a música que toca em seu fone de ouvido. É um antigo sucesso de Belle and Sebastian. Ela balança a cabeça no ritmo da música e, após vários segundos encarando a tela, desiste de começar o texto e se levanta para buscar um café.
Quem nunca teve bloqueio para escrever, que atire a primeira pedra. Acontece até com Charlie Kaufman, vencedor do Oscar por Brilho Eterno de Uma Mente sem Lembranças. Mas antes disso, em 2002, Kaufman era um roteirista vindo da TV que havia escrito o primeiro longametragem e acabara indicado ao prêmio da Academia por Quero Ser John Malkovich. Até que foi convidado para adaptar o livro “O ladrão de orquídeas”, da jornalista Susan Orlean, e se viu sem saída para contar uma história em que pouco acontecia e, ao mesmo tempo, fazer jus ao material original.
E eis que Charlie Kaufman escreveu um roteiro sobre Charlie Kaufman escrevendo um roteiro. Você pode chamar de metalinguagem – eu chamo de malandragem, e das boas. É difícil dizer o quanto de Adaptação vem de fato do desespero do roteirista, mas ei, este seria um filme sobre flores. Só por conseguir fazer uma história sobre o processo criativo, com direito a pequenas doses de traição, suspense, drogas, romance e ação, Kaufman já fez valer aquela indicação ao Oscar – a que veio depois, por Adaptação mesmo.
Metade disso ele deve a Donald, é verdade. Não fosse por seu irmão gêmeo, é bem provável que o roteiro nunca tivesse saído do ponto de estagnação em que se encontrava. Donald salvou o dia, o filme e dividiu aquela indicação com Charlie – pena que ele não existe. Ele foi um artifício da trama com um papel tão decisivo na finalização do primeiro rascunho que Charlie, o de verdade, incluiu o nome do “irmão” na autoria do roteiro e voilá: Donald se tornou a primeira pessoa fictícia a ser indicada ao Oscar.
Essa é só mais uma bizarrice no universo de Charlie Kaufman – afinal, estamos falando do cara que criou um portal na mente de John Malkovich e uma máquina que apaga pessoas indesejáveis das nossas memórias. Dá pra dizer que, no mínimo, ele escreve histórias pouco convencionais. E só quem poderia contar essa era Spike Jonze.
Apenas três anos antes, o diretor era mais um estreante nessa coisa de fazer cinema. Ele vinha dos videoclipes e dos curtas, mas se ajustou tão bem ao meio que acabou com uma indicação ao Oscar também por Malkovich. Adaptação encontra Kaufman durante a produção do primeiro filme, já lutando com a crise criativa. Em certo ponto, ele até considera contar a história a partir do arco dramático da orquídea, voltando ao início da vida na Terra e sua jornada de evolução, só pra não perder aquele toque kaufmaniano.
O bloqueio do roteirista é o mote principal, mas não o único. Na medida em que a trama se desenvolve, descobrimos que o filme é, bem, sobre adaptação. Não aquela em que se transforma um material de uma mídia para outra, mas sim aquela em que transformamos a nós mesmos frente às adversidades. É se adaptar ao meio, quase que como por seleção natural. “Adaptação é um processo profundo. Significa que você descobre como prosperar no mundo”, resume Susan Orlean (Meryl Streep), ao som de Wild Horses, dos Rolling Stones.
Ela está na van de um botânico apaixonado por orquídeas. John Laroche (Chris Cooper) foi pego contrabandeando uma espécie rara, removida de uma área de preservação ambiental, e vai ser julgado pelo crime. Orlean é repórter da revista New Yorker e se interessa pelo personagem fora do comum que é Laroche (parte disso pode se dever à sua falta de dentes).
O artigo foi tão bem recebido que a editora Random House convidou a jornalista a transformá-lo em um livro, cuja adaptação para o cinema já vinha sendo acompanhada de perto por um estúdio. É aí que Charlie entra em cena, suando profusamente para convencer Valerie (Tilda Swinton), uma produtora, de que é o cara para o trabalho.
Mas ele tem o prato cheio no momento. Tem de lidar com um irmão que faz piadas bobas e não sai de sua casa e com a própria falta de ação para beijar a amiga por quem é apaixonado. Quem dá vida a esse sujeito amargurado e solitário (e também a seu gêmeo mala-sem-alça) é um Nicolas Cage acima do peso e quase careca – ironicamente, em uma de suas melhores formas.
E se um Nic Cage é bom (essa é uma discussão pra outra hora), dois são… o cúmulo do narcisismo. Kaufman sabe disso, mas também sabe que utilizar fórmulas e truques podem empobrecer uma história, e é exatamente o que ele faz. O último ato está cheio deles! Mas Adaptação corre o risco e acerta em cheio. Ao tentar aconselhar o escritor, o professor Robert McKee (Brian Cox) diz: “Surpreenda-os no final e você tem um sucesso”. Parece que o roteirista aprendeu a lição.