O Cinema de Buteco convidou o crítico Alex Gonçalves, do blog Cine Resenhas, para falar sobre os melhores filmes brasileiros de 2015. Quais são os seus favoritos?
Um levantamento superficial aponta que este ano trouxe uma quantidade de lançamentos próxima do total de 2014, que ultrapassou a marca de 100 títulos. No entanto, não é algo a se comemorar com muito entusiasmo. Claro, são indícios de que a nossa produção está crescendo, bem como a diversidade de temas, gêneros e possibilidades. Mas em uma análise mais fria, constata-se que muitos projetos pequenos, alternativos, chegam ao público sem nenhum cuidado, garantindo um espaço ingrato em um circuito feroz.
É uma discussão que certamente será ampliada em 2016, com toda a promessa de inauguração de salas populares, a expansão do streaming e algumas normas que poderão ser modificadas, como a limitação da meia-entrada. Para este momento, podemos celebrar os ótimos filmes nacionais que tivemos acesso em 2015, um coletivo que representa uma pluralidade que só nos faz avançar para novos territórios.
E não só por isso. Os filmes relacionados a seguir homenageiam com dignidade grandes figuras de nossa história, como o fotógrafo Sebastião Salgado, o nosso cidadão Kane Assis Chateaubriand, o artista plástico e carnavalesco Joãosinho Trinta e a cantora Cássia Eller. Temos também o retrato de uma época, tão bem capturado em “Califórnia”, “Que Horas Ela Volta?” e, por que não, “A Floresta que se Move”, este trazendo Shakespeare para um contexto contemporâneo. Por fim, há também “A História da Eternidade” encontrando a imensidão na pequenez de lugar nenhum no Pernambuco, uma brincadeira com as nossas expectativas em “A Vida Privada dos Hipopótamos” e o canto do cisne de Eduardo Coutinho, o maior documentarista que o cinema brasileiro já teve.
São filmes para todas as multidões e que, é certo, renderá muitos papos no buteco.
10. O Sal da Terra, de Juliano Ribeiro Salgado e Wim Wenders
Embora o trabalho do mineiro Sebastião Salgado já tenha virado assunto para documentários como “Looking Back at You” (1993) e “The Spectre of Hope” (2002), é em “O Sal da Terra” que temos uma aproximação mais íntima com o fotógrafo, dos seus primeiros passos profissionais até o seu engajamento pela sobrevivência da natureza por meio do Instituto Terra. Ainda que o convite oferecido a Wim Wenders para co-dirigir esta produção franco-ítalo-brasileira não colabore para extrair fatos reveladores além daqueles obtidos por Juliano Ribeiro Salgado, a oportunidade em focar Sebastião revendo e comentando as próprias imagens que capturou nos permite relacionar com o seu trabalho com uma reflexão ainda mais implacável sobre a desumanidade que nos cerca e a esperança advinda de nossas próprias origens.
9. Califórnia, de Marina Person
Lamentavelmente pouco conhecido, o curta-metragem de1996 “Almoço Executivo” já trazia a ex-VJ Marina Person registrando com muita ternura a geração em que estava inserida. Com interesse em construir uma carreira em cinema, a paulistana faz a sua estreia em longa-metragem com “Califórnia” resgatando a sua juventude oitentista regada a muito rock n’ roll, troca de carícias e as inevitáveis indecisões na formação da própria identidade. A ótima estreante Clara Gallo vive com a sua Estela um alterego de Marina Person, perdendo características de sua inocência com a presença de um tio, Carlos (Caio Blat), que a fará cavar as fragilidades da vida em alguém inebriado pelo entusiasmo. Faz reviver os bons tempos em que as descobertas se davam com relações mais humanas e nem um pouco ditadas por dispositivos móveis e recursos de interações instantâneas.
8. Chatô, o Rei do Brasil, de Guilherme Fontes
2015 foi um ano estranho de modo geral, mas será relembrado pelos brasileiros como o episódio em que “Chatô, o Rei do Brasil” deixou de ser uma lenda urbana para finalmente ser exibido ao público. Duas décadas afastam a pré-produção da adaptação da biografia homônima de Fernando Moraes do lançamento da empreitada ousada de Guilherme Fontes. Megalomania a processos a parte, “Chatô, o Rei do Brasil” não vem apenas como um dos filmes de maior valor histórico já produzidos no país, mas também como um entretenimento com qualidades inevitáveis, como a cenografia, as interpretações e a sábia decisão em desconstruir a cinebiografia convencional com recortes que se aproximam de devaneios de uma figura antiética, bruta e fantástica da Comunicação no Brasil.
7. A Floresta que se Move, de Vinícius Coimbra
Lamentavelmente, o complexo de vira-lata que volta e meia impera na decisão de muitos em ver e avaliar uma produção nacional comprometeu uma carreira mais próspera para “A Floresta que se Move”. Enquanto o australiano Justin Kurzel fez uma versão convencional de “Macbeth” com Michael Fassbender e Marion Cotillard com prazo de validade já prestes a vencer, Vinícius Coimbra foi muito mais autêntico e corajoso ao adaptar o mesmo texto neste drama protagonizado por Gabriel Braga Nunes e a sumida e exemplar Ana Paula Arósio. Em tempos de crise, com os imponentes edifícios bancários encontrando conexão com um império shakespeariano, “A Floresta que se Move” pode incorrer a erros, mas prova que é a subversão que garante a contemporaneidade de obras concebidas em períodos já distantes.
6. A História da Eternidade, de Camilo Cavalcante
O pernambucano Camilo Cavalcante faz talvez a estreia na ficção de longa-metragem mais promissora testemunhada neste ano na produção nacional. Em “A História da Eternidade”, os dramas de três mulheres ganham ressonância em meio a um vilarejo no meio do nada e esquecido pelo resto do mundo. Querência (Marcelia Cartaxo), Dona Das Dores (Zezita Matos) e a adolescente Afonsina (Débora Ingrid) finalmente se deparam com presenças masculinas que preenchem os seus vazios existenciais, ainda que de modo proibido. Em meio à aridez e à passagem do tempo que nenhuma recompensa oferece, “A História da Eternidade” ainda assim consegue enxergar o infinito quando os seus personagens se abrem ao lirismo, este ganhando ares com a bela fotografia de Beto Martins e a música assinada pelo polonês Zbigniew Preisner e o saudoso Dominguinhos.
5. Trinta, de Paulo Machline
Muitos brasileiros são resistentes com o Carnaval, taxando-o como um espetáculo vulgar e sem nenhuma valia. Uma opinião talvez mantida com base no recorte televisionado, que geralmente não favorece a celebração. Pois “Trinta” é um filme capaz de quebrar muitos preconceitos, um longa dirigido por Paulo Machline que retrata o divisor de águas que a presença de Joãosinho Trinta foi para a escola de samba Salgueiro, antes sob o controle de Fernando Pamplona. Matheus Nachtergaele está maravilhoso como o personagem-título, um homem que superou os preconceitos daqueles que o rodeavam por suas preferências profissionais ao conferir um viés artístico para os temas de seus desfiles como nenhum outro. O resultado certamente fará qualquer um ter novos olhos e ouvidos para os deslumbrantes carros alegóricos e os sambas-enredos que os movem.
4. A Vida Privada dos Hipopótamos, de Maíra Bühler e Matias Mariani
O documentário tem o compromisso de exibir as várias faces da verdade para qualquer tema que deseja debater ou partilhar. No entanto, é inevitável que a parcialidade se manifeste, bem como as mentiras e omissões que o aproximam da ficção. Maíra Bühler e Matias Mariani experimentaram isso na pele com “A Vida Privada dos Hipopótamos”. Preso, o americano Christopher Kirk se meteu em uma grande enrascada em uma aventura inocente pela Colômbia para visitar as dezenas de hipopótamos deixados à própria sorte com a morte de Pablo Escobar, que os tinham como animais de estimação. A consequência foi o relacionamento sério com uma mulher misteriosa que o levou à prisão. Kirk é um banana simpático e as evidências comprovam a veracidade de seus depoimentos. No entanto, ficará a cargo do espectador dar o veredito final, inclusive após as inúmeras reviravoltas de um registro cômico que vai atingindo tons cada vez mais obscuros.
3. Cássia Eller, de Paulo Henrique Fontenelle
Em matéria de registros documentais sobre grandes representantes da música nacional, o Brasil definitivamente não deve em nada, tanto pela quantidade de títulos que exaltam os nossos artistas como pela qualidade, a exemplo de “Loki – Arnaldo Baptista” e “Waldick, Sempre no Meu Coração”. Seria apenas uma questão de tempo para a carioca Cássia Eller receber um registro todo seu e é reconfortante que Paulo Henrique Fontenelle o tenha feito com algo à altura de sua memória. Mais do que compreender a introspecção desse talento por meio da revisitação de sua privacidade e dos marcos de sua carreira musical, “Cássia Eller” acerta ao compreendê-la como um nome de uma força que ainda ressoa após o fim de sua existência, como comprova os desdobramentos da luta de sua companheira Maria Eugênia Martins pela custódia de Chicão, um fruto da relação de Cássia com o músico Tavinho Fialho.
2. Últimas Conversas, de Eduardo Coutinho
Por uma feliz coincidência, grandes cineastas que já partiram encontraram no seu canto do cisne um documento que consegue sintetizar com perfeição toda a sua obra. Ainda bem que, antes de seu trágico fim, o documentarista Eduardo Coutinho já continha um material finalizado para um próximo projeto, organizado e batizado como “Últimas Conversas”. Na sua curiosidade em colher depoimentos de jovens que se preparam para encerrar o ensino médio em uma instituição do estado do Rio de Janeiro, Coutinho volta a capturar reações e confissões comoventes, engraçadas, surpreendentes e com a esperança de que aquelas pessoas irão se transformar ao fecharam a porta que os transportam de volta à realidade. A vida continua e o encerramento de “Últimas Conversas” com o encontro de Coutinho com uma garotinha de seis anos não poderia ilustrar essa constatação de modo mais belo.
1. Que Horas Ela Volta?, de Anna Muylaert
Quando Anna Muylaert fez a sua aguardada estreia na direção de um longa-metragem com “Durval Discos”, ficou evidente para todos que estávamos diante de alguém com a habilidade muito especial de flagrar constatações nada lisonjeiras de gente como a gente dentro da redoma do lar. Sem vacilar, a paulista só progrediu em seus filmes seguintes, “É Proibido Fumar” e “Chamada a Cobrar”. “Que Horas Ela Volta?” vem como um novo patamar atingido, cutucando em uma ferida muito incômoda para a nossa sociedade: as relações de poder ditadas por classes sociais e todos os seus códigos escravagistas. Sem estereótipos, “Que Horas Ela Volta?” vem como uma representação verdadeira do que é o Brasil hoje, uma pretensão que muitos cineastas ainda miram sem acertar certeiramente no alvo como Anna Muylaert.