Durante ao menos dois momentos da sessão de Dois Caras Legais, pude me notar direcionando uma atenção magnética ao trabalho que um sujeito chamado Ryan Gosling desempenhava na tela; a conclusão foi óbvia: este ator é o meu favorito de sua geração. O canadense de 35 anos que despertou meu interesse pela primeira vez em Um Crime de Mestre (2007), teve em 2011 um ano brilhante com Tudo Pelo Poder, Amor a Toda Prova e – especialmente – Drive, marcou outra vez no ano seguinte com O Lugar Onde Tudo Termina e, neste ano, já havia brilhado em A Grande Aposta, alcançou aquela que considero sua melhor atuação em Dois Caras Legais, prova máxima de sua versátil capacidade de transitar tranquilamente entre a comédia e o drama, simbolizando uma grande surpresa – como todo o filme, aliás.
Que uma introdução inteiramente direcionada à performance de Gosling não soe como um diminutivo das qualidades desta – excelente – produção, porém; Dois Caras Legais cruza a fronteira estrutural do buddy cop movie, assegurando tranquilamente um espaço entre os melhores títulos que a sétima Arte nos entregou em 2016 – o que, vale reafirmar, é surpreendente. Sob o comando de Shane Black, roteirista da franquia Máquina Mortífera e d’O Último Grande Herói e também diretor em Beijos e Tiros, ou seja, alguém que domina a condução de propostas narrativas semelhantes à deste projeto, fica evidente que só é possível renovar uma fórmula e com ela surpreender uma vez que se possui o amplo conhecimento da mesma.
A dupla Holland March (Gosling) e Jackson Healy (Russell Crowe) poderia ser apenas mais uma representante do conflito cômico entre personalidades extremas unidas pela peculiaridade de uma ocasião – e, de fato, é deste ponto que parte sua relação. No entanto, o que torna Dois Caras Legais tão eficiente é a noção de Black e seu parceiro de roteiro Anthony Bagarozzi da necessidade de ir além na exploração deste relacionamento; os dois sujeitos são complementares e contrastantes, e acima de tudo são grandes personagens. Observe o momento em que, diante do pedido da vovó Mrs.Glenn para que o detetive particular March continue procurando por sua neta – que já faleceu -, este não volta atrás em sua desistência apenas pela oferta financeira, mas por um traço quase esquecido de sua compaixão com a idosa – algo que Gosling transmite com um sutil olhar -, ou mesmo quando Healy conclui uma história aparentemente banal para seu cotidiano com a frase “por um momento, eu me senti útil”; são atitudes que comprovam a intenção da narrativa em construir protagonistas que, embora sejam picaretas e trapaceiros na maior parte do tempo, possuem uma fragilidade praticamente redentora, uma espécie de arrependimento sentimental pela necessidade de seus próprios atos – e a consequência externa é exposta, por exemplo, com o alcoolismo de March ou a evidente solidão de Healy. Embora façam uso cotidiano de, respectivamente, enganação e violência, os dois possuem internamente uma insegurança e uma fragilidade que reflete suas próprias decadências – e é isto o que permite uma convivência recheada de identificação, apesar dos desencontros iniciais.
Por sorte, os vigorosos trabalhos interpretativos de Gosling e Crowe não funcionam como carregadores de piano da narrativa, que possui uma energia própria em outros aspectos. É o caso, por exemplo, da habilidade do roteiro para conseguir sustentar-se comicamente além da dinâmica da dupla protagonista, com algumas gags sutilmente referentes à atualidade – se você habita a realidade concreta, também irá gargalhar quando uma antagonista afirma que “Detroit sempre vencerá”, numa piscada sensacional do roteiro para o público, que simboliza uma espécie de vitória para os Nice Guys -, ou mesmo em outras sequências que, sem tanta sofisticação, provam-se hilárias – “Sabe quem também só estava seguindo ordens? Hitler” -, e comprovam que o longa está disposto a brincar com seus próprios absurdos – a “indesejada invencibilidade” de March chega a ser lamentada pelo próprio. Além disso, a produção consegue nos ambientar aos anos 80 de maneira absolutamente competente, com um design de produção que, em duas sequências de celebrações, contextualiza toda a megalomania da década, permeada pela presença do sexo, das drogas, das cores quentes, da celebração dos bens materiais e da disco music – e, melhor ainda, encaixa organicamente estes elementos à trama -, algo que é coroado pelos geniais castings de Keith David e Beau Knapp.
Ainda abordando as virtudes da produção além da dinâmica de seus protagonistas, deve ser brindada a inteligência de um texto que comprova, no terceiro ato, possuir uma surpreendente consciência social, exposta a partir das resoluções de sua trama criminal – mesmo considerando todos os absurdos, quase irrelevantes, que fizeram parte desta. Aliás, é justamente isto o que torna a presença desta consciência tão interessante: Dois Caras Legais consegue direcionar um aparentemente absurdo emaranhado conspiratório para a realização da sempre relevante denúncia da postura passiva e conivente dos órgãos públicos diante de ações ilegais das grandes indústrias, que a partir do “triunfo” do modelo social estadunidense passaram a acumular um poder incontrolável, não podendo ser reduzido nem mesmo pelas descobertas de suas atitudes criminosas – normalmente misteriosamente acobertadas; restaria então, aos caras legais, às movimentações bem intencionadas, render-se diante da crueldade do triunfante grande capitalismo, e seguir a vida da maneira como for possível. Talvez esta seja a razão da cada vez mais fascinante angústia expressada pelos sensacionais Holland March e Jackson Healy.