#ButecoInRio 2016 – 07: Comboio de Sal e Açúcar, Certas Mulheres, Dois Amantes e um Urso e O Contador

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TERMINA AQUI A COBERTURA do Cinema de Buteco para o Festival Internacional de Cinema do Rio de Janeiro 2016. Diante de um diversificado catálogo de produções, a percepção de uma programação arquitetada de modo a produzir um discurso cultural coerente, contundente e atual; no âmbito pessoal, a satisfação de perceber-se fascinado pela experiência de uma primeira – de muitas, espero – cobertura de grande evento cinematográfico. Em tom conclusivo, nosso último dia:

  1. Comboio de Sal e Açúcar ★★★

(idem, Brasil, Portugal, França, 2016)

Dentro do fragmentado escopo analítico de uma produção cinematográfico, há de se considerar sua relevância enquanto elaboração de uma abordagem que não esteja disposta a apenas repetir aquilo que já foi multiplamente realizado na arte – esta percepção fundamenta a dita autenticidade narrativa. Comboio de Sal e Açúcar, além de dedicar-se à retratação de um conflito militar – em Moçambique – que normalmente não motiva o direcionamento das lentes cinematográficas mais conhecidas, normalmente voltadas exclusivamente às conflagrações que envolvam nações ocidentais, complementa a autenticidade deste objeto com a forma de sua dramatização, marcada pela proposição, por meio dos eventos da trama – abuso sexual, postura imperativa -, de uma discussão acerca das forças militares abdicando de serem encaradas pela população que representam com confiança e segurança para tornarem-se símbolos da imposição de ordem por medo e ameaça – culpa de seus próprios atos -, um debate levantado que depõe a favor da humanidade da obra, colocando-a num seleto grupo, quanto a este quesito e considerando proporcionalmente, ao lado de “Platoon”, por exemplo, enquanto questionadores do caráter postural do exército.

Junto de sequências de ação surpreendentemente bem coreografadas e uma trilha sonora dotada de urgência, esta reflexão que garante a qualidade de Comboio de Sal e Açúcar é sabotada apenas pela incontrolável necessidade de aderir a certos pressupostos do gênero – exemplos são os arquétipos clássicos de soldados e a dispensável “busca pelo traidor” -, empalidecendo alguns aspectos do longa.

 

  1. Certas Mulheres ★★★

(Certain Women, EUA, 2015)

A questão da representatividade dentro da esfera cultural-artística deve ser ainda mais ressaltada e cobrada do que vêm sendo na atualidade – embora o crescimento já seja relevante -, sobretudo diante de correntes retrógradas determinadas a obstruírem este debate; ainda assim, existe um louvável leque de realizações cinematográficas engajadas em sua movimentação – “Aquarius” foi um deles, e este Certas Mulheres é outro.

Esta obra se determina, vale a observação, a suscitar tal discussão calcando-se exclusivamente no espectro narrativo, afugentando possíveis acusações de construção passional de um discurso – o que é paralelamente benéfico e prejudicial.

Sejam a advogada profissionalmente determinada, a mãe e esposa dedicada ou a jovem honestamente fascinada, todas as personagens escritas por Kelly Reichardt – também diretora – e Maile Meloy são fundamentalmente humanas, protagonistas de suas próprias atitudes, angústias, desejos e sentimentos; são mulheres, não arquétipos. Em suas jornadas de realização, carregam a marca da melancolia visualmente registrada pela produção – aquela que é cercada pelas exigências diárias, a personalidade cuja subjetividade é reprimida pelos requisitos de um projeto familiar, ou alguém sufocada pela monotonia e solidão que inevitavelmente a determinam à obsessão e paixão.

O distanciamento adotado na condução de Reichardt, no entanto, proporciona um consequente resfriamento na relação entre o espectador e as personagens – talvez efeito justamente do repúdio à passionalidade de um discurso. Algo, contudo, que não ofusca a humanidade e a sensibilidade da obra, dotada de uma representatividade que não deveria mais representar exceção.

 

  1. Dois Amantes e um Urso ★★★

(Two Lovers and a Bear, Canadá, 2016)

O intrigante na relação proposta pelo título desta produção canadense é sua sugestão de uma aproximação entre o casal mencionado e o animal polar que seria, no mínimo, inusitada – no entanto, surpreende que os caminhos tomados pelo roteiro tornem o mais curioso elemento entre os que nomeiam a produção o mais, digamos, coadjuvante. Paralelamente, presenciamos entre Lucy (Tatiana Maslany) e Roman (Dane DeHaan) – os dois em interpretações destacadas, diga-se – uma relação cuja imprevisibilidade emocional é escancarada de maneira intensa e verossímil, expondo para o espectador a noção de um contexto de crise em relação causal-consequente com a legitimidade e a plenitude da entrega emocional de ambos e, bem, o urso, um alívio cômico bacana.

A questão é que, de fato, as aparições do animal polar são eficazes enquanto provocadoras de riso; no entanto, representam uma metonímia do que é a questão problemática do filme: sua incoerência quanto ao tom. Um trabalho iniciado por um drama envolvente e progressivamente crescente em intensidade perde espaço para as intervenções de comicidade e, a certa altura, por uma atmosfera de aventura do casal – o que inibe um envolvimento íntegro do espectador nas questões legitimamente dramáticas da narrativa. Esta abordagem transitiva e desequilibrada prejudica estruturalmente Dois Amantes e um Urso, que nos oferece alguns dos momentos mais comoventes do cinema neste ano.

 

  1. O Contador ★★★

(The Accountant, EUA, 2016)

A priori, O Contador remete a um drama psicológico que encaminha progressivamente seu protagonista para a superação heróica. No final das contas, o filme de Gavin O’Connor não deixa de sê-lo – substituindo, porém, a forma tradicional de pieguice melodramática por uma atmosfera incorrigivelmente divertida.

Christian Wolff (Ben Affleck), seu personagem principal, é um contador autista e, secretamente, uma espécie de vingador extremamente habilidoso nas artes marciais. Sua completa inabilidade social, de um elemento sensibilizador, transforma-se rapidamente no recurso cômico da narrativa – desviando de uma abordagem preconceituosa, no entanto, uma vez que as angústias do sujeito são expostas; trata-se apenas de uma deliciosa inconstância entre a determinação e sucesso do herói na realização de suas missões em contraste com seu absoluto fracasso no âmbito interpessoal, algo ainda mais funcional por não incomodá-lo de maneira alguma.

Fica evidente que a produção apropria-se desta questão também como muleta para maquiar incoerências – a mesma inabilidade é reduzida quando conveniente –, bem como a utiliza à beira do absurdo na revelação inicial das extraordinárias habilidades do personagem. Contudo, é justamente contando com um esforço admirável de Ben Affleck, cuja inexpressividade é inteligentemente utilizada para transitar entre a insegurança emocional e seu antônimo físico, tornando-o um misto de vulnerabilidade, ameaça e inusitado carisma, que O Contador consegue direcionar uma possível incongruência para servir a favor do divertimento.

Até 2017.