#ButecoInRio 2016 – 06: Dog Eat Dog, Baden Baden, Personal Shopper, Cinema Novo e Indignação

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ESTA SEXTA-FEIRA REVELOU-SE o mais importante capítulo da jornada do #ButecoInRio. Entenda:

 

  1. Dog Eat Dog ★★★★

(idem, EUA, 2016)

Em sua primeira cena – uma sequência envolvendo Mad Dog (Willem Dafoe), subjetividade mental, drogas, televisão, assassinato e fotografia rosada -, este projeto de Paul Schrader (roteirista do maravilhoso “Taxi Driver”) já diz a que veio. No universo de Dog Eat Dog, os seres humanos não creem que suas vidas valham mais do que alguns milhares de dólares – e, neste contexto, a autodestruição é óbvia consequência.

Com inevitavelmente notáveis referências a “Jogos, Trapaças e Dois Canos Fumegantes” – além da natureza explosiva dos protagonistas e da construção das cenas mais violentas, até mesmo um personagem (The Greek) compartilha seu nome com um daquele título -, Schrader também insere em sua narrativa uma atmosfera noir formalmente justificada pelos acontecimentos da trama. Afinal, a trama absolutamente clichê e evidentemente despreocupada com isso não configura uma desqualificação da produção, uma vez que o trio Troy (Nicolas Cage), Mad Dog e Diesel (Christopher Matthew Cook) dispõe-se a brincar com a apropriação de tais convenções do gênero – um diálogo sobre quais seriam suas atitudes no caso de fracasso de sua estratégia criminal explicita isto -, apontando então para o toque de genialidade da obra: o inspiradíssimo e hilário processo metamórfico do revelado cinéfilo Troy, ou melhor, do próprio Nicolas Cage – o personagem não passa de um alter-ego -, transformando-se numa “reencarnação” de Humphrey Bogart. Sim.

 

  1. Baden Baden ★★★★

(idem, Bélgica, França, 2016)

É interessante notar a recente construção de uma vertente da produção cinematográfica dedicada à retratação das relações afetivas entre seres humanos da maneira mais verossímil – no sentido da libertação dos rodeios, conflitos dramatúrgicos, e de consequente aproximação da realidade – possível, um esforço absolutamente louvável e ainda restrito ao dito cinema “alternativo”, mas que deve contaminar as grandes produções estadunidenses em breve. Baden Baden é fruto deste movimento.

Entre as cores amaciadas do cotidiano belga, Ana é uma mulher de 26 anos que não se encontra disposta a planejar tradicionalmente um futuro; seus anseios estão muito mais direcionados a um mergulhar intenso nas relações pessoais – aproveitá-las enquanto durem, afinal. Se a obra-prima “Blow Up: Depois Daquele Beijo”, de Michelangelo Antonioni, expunha minuciosamente a natureza do homem moderno que, na crença do domínio da realidade, envolvia-se numa série de projetos fadados a serem esquecidos e permanecerem como, bem, apenas projetos, é possível dizer que o longa-metragem de Rachel Lang, considerando as devidas proporções, ambiciona fazer uma re-contextualização de tal proposta: as realizações desconcentradas e brevemente interrompidas, porém, dão lugar às relações entre seres humanos, refletindo assim o caráter da pós-modernidade, na qual os envolvimentos interpessoais inevitavelmente começam e terminam de maneira efêmera, reservando aos que os vivenciam apenas marcas temporais. A noção de permanência que a avó da protagonista Ana (Salomé Richard) imagina para sua neta não faz mais parte da realidade da jovem, cercada por pessoas importantes que apenas passarão por seu cotidiano – alterando-o momentaneamente -, pareando a frustração amorosa e o encanador solidário. Um tempo que mantém os envolvimentos na epiderme.

 

  1. Personal Shopper ★★★

(idem, França, 2016)

Definitivamente, Kristen Stewart e Olivier Assayas formam uma dupla da qual me assumo admirador. Sob o comando do diretor e roteirista, a atriz surpreendentemente nos entregou aquela que é uma das melhores atuações femininas do ano passado, em “Acima das Nuvens”; em Personal Shopper, ela foi superada. Simbolicamente cercada por escuridão desde suas primeiras aparições na tela, a protagonista Maureen, vivida pela californiana, é a alma desta obra.

Sem exageros, de fato são as inseguranças, hesitações e angústias da personagem que, além de tornarem-na humana, plausível e distante de qualquer arquétipo, também movem o arco dramático da narrativa. Sua irremediável busca pelo contato do falecido irmão, a velada solidão que a permite se abrir profundamente com um ameaçador anônimo, fundamentam conjuntamente a percepção de um incorrigível anseio por uma obsessão, uma inquietude que não permite à jovem almejar tranquilidade. A instabilidade que por vezes contamina também a estrutura narrativa – há certo aspecto conflitante entre a questão espiritual e a ameaça virtual misteriosa – espelha a amargura e indefinição intrínseca ao estado atual de Maureen, cabendo à intérprete atribui-la uma perturbação crivelmente alcançada por Stewart, alternando a frieza reveladora, a repressão dos próprios desejos, com o beirar da explosão dramática e a entrega à realização dos mesmos – aliás, o diálogo freudiano proposto na relação desta entrega, provocada pela intervenção daquilo que a ameaça, com a ação da libido, da avidez sexual, é inteligentemente observado.

Em congruência, a surpreendente habilidade de Assayas em construir uma atmosfera quase teatral de tensão – há uma sequência que deixará boa parte dos diretores do cinema de horror recente com inveja, diga-se – trabalha favoravelmente à atriz, passando ainda pela inquietude da câmera e por uma trilha sonora precisamente sobrecarregada. Personal Shopper merece ser pensado.

 

  1. Cinema Novo ★★★★★

(idem, Brasil, 2016)

Naquela que considero a mais importante exibição a que fui nesta semana de cobertura, a reflexão proposta transcende a abordagem dos méritos do produto exibido, revelando algo de fundamental no discurso carregado e comunicado pelo próprio Festival do Rio 2016. O palco era o Cine Odeon, na singular Cinelândia, que também pode ser considerada uma personagem coadjuvante do filme; a sessão, prestigiada, contou com a presença, além do diretor Eryk Rocha e equipe, de alguns nomes de altíssimo calibre do nosso cinema, como Carlos Diegues, Ruy Guerra e Fernanda Montenegro; o curta-metragem exibido antes, “Os Cravos e a Rocha”, dialoga contundentemente com a atração principal. Tratou-se, afinal, de uma merecida celebração do nosso cinema – a semente proposta e sedimentada por Cinema Novo.

Distribuindo seus 90 minutos entre declarações da época dos grandes diretores que encabeçaram o movimento – alguns deles: Carlos Diegues, Glauber Rocha, Nelson Pereira dos Santos, Leon Hirszman, Arnaldo Jabor, Ruy Guerra, Paulo César Saraceni -, cenas de seus filmes e outros arquivos jornalísticos de áudio e vídeo relativos à cultura no período, o documentário possui um evidente trabalho primoroso de pesquisa; mais do que isso, existe uma organização narrativa muito coerente no longa-metragem, de modo a estruturar linearmente os atos deste experimento cinematográfico – as raízes de seu pensamento como reflexo de um anseio social, seu modo de produção artística, auge popular e, enfim, a derrocada em 1964, com o Golpe Militar -, construindo um diálogo coerente entre os depoimentos de arquivo e as sequências expostas em tela – estas, responsáveis sobretudo pela provocação do interesse do espectador nas obras presentes.

No entanto, sua mais notável virtude é fruto daquilo que oferece a perspectiva tratada na introdução deste texto: seja num arquivo de rádio responsável pela frase “O jovem cinema brasileiro é necessariamente político” ou na necessária por excelência fala de Leon Hirszman dissecando a respeito da cultura produzida num país ser reflexo de relações sociais abertas, coletivas, participativas e livres de medo na mesma conjuntura, existe a clara comunicação de um discurso que conscientemente assimila a arte e a cultura como as únicas formas de transformação social da qual temos domínio de fato; o cinema novo teve como principal empreitada a elaboração da noção de uma representatividade cultural nacional, possibilitada apenas graças ao cinema, uma arte essencialmente coletiva, na qual o pensamento e planejamento devem ser compartilhados; o cinema novo foi necessariamente político em decorrência de sua liberdade de manifestação cultural, permissivo, enfim, da retratação legítima do povo brasileiro, aquilo que o acompanha, seus anseios, dificuldades e virtudes – um princípio que, em exercício puro e simples, representa o enfrentamento do poder estabelecido, a ação da resistência. É evidente, portanto, que toda forma de perpetuação do poder dentro do estabelecido, das elites, voltar-se-á à desvalorização de um movimento como este, poderoso simbolicamente pelo discurso que carrega, se não coercitiva ou financeiramente; não apenas deste, porém, bem como de toda valorização cultural nacional – portanto, produzir bom cinema brasileiro consequentemente confronta todo tipo de pensamento conservador e retrógrado que insiste na desvalorização deste, seguidor de um ideário cujas raízes são claras e perigosas; eis o “necessariamente político”.

O que distingue fundamentalmente o cinema novo de qualquer movimentação cinematográfica pertencente à atualidade decorre da incapacidade ainda recorrente de recuperarmos o senso de coletividade pertencente àquele pensamento, algo dissolvido pela Ditadura Militar e jamais retomado. Voltamos a debater cinema – predominantemente por meio das mídias digitais -, e produzir obras que retratam coerentemente nossa realidade – basta observar “O Som ao Redor”, “Que Horas Ela Volta?”, “Casa Grande” e “Aquarius” em sequência -, produzindo um diálogo, algo simbólico de importantes passos adiante; no entanto, buscar o mergulho e profunda inspiração naquele movimento de mais de cinco décadas atrás parece ser a única forma de almejar uma transformação factual – e Cinema Novo nos oferece esta possibilidade.

 

  1. Indignação ★★★★

(Indignation, EUA, 2016)

Baseada na obra literária de Philip Roth, esta produção dirigida e adaptada pelo simpático James Schamus, que apresentou a sessão, em seu primeiro longa-metragem, revela neste segundo uma surpreendente maturidade na realização narrativa para um estreante. A surpresa provocada está enraizada na sensibilidade com a qual Indignação conduz seus dramas dispensando o frequente recurso do excesso de conflitos, rodeios e artifícios maniqueístas – enfim, o cinema estadunidense parece passar a progredir na retratação da angústia humana.

Embora as relações apresentadas alterem-se com uma rapidez perceptível, o roteiro do projeto propõe uma discussão absolutamente humana ao expor e destrinchar, em todas as personagens que movem a trama, seres humanos sujeitos a um contexto de intensa intolerância, julgamento coletivo e desvalorização de sua subjetividade – o rapaz contestador das convenções familiares e acadêmicas, a jovem cujos sentimentos são dissolvidos em nome de uma rotulação de “promiscuidade”, a esposa submissa à convivência com um marido que a enlouquece, assim por diante -, justamente o responsável por conduzi-las às tão frequentes indecisões e incongruências intrínsecas – mas não naturais, e sim culturais, ressalto – a todo e qualquer indivíduo. A contundência desta reflexão, conjuntamente à sensibilidade com a qual os mesmos são desenvolvidos, revela uma surpresa extremamente agradável.